Poemas Longos

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Príncipe

Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

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Algumas Horas Outras

1

algumas horas outras invadiram as sedas, os perfumes
ácidos da louça, não serão recordadas, ou quanto mais
as recordarmos, mais a ignorância deitará
os corpos no tapume de vidros, para que em torno
se conciliem as vontades singulares, as
particularidades de um impetuoso alarme.
ou seja: deixarão as esplanadas baças, os garfos
encolhidos, para que um amplo destino os atravesse.
considerem, por exemplo, o paquete que ao meio-dia
igere as minuciosas palmeiras sobre a
alta insensatez dos aquedutos. ou ainda
a ilusão dos alicates ao lado da água, e o seu reflexo
do outro lado das vidraças: azul, não é?
assim estas algumas outras horas: como esquecê-las?

2

e ainda o sossego das interrogações não se deixa
facilmente esborratar, ou a qualidade
das tintas, assim no meio do lençol,
o impediu até agora. algumas
são as horas do vasto almofadão translúcido
onde as janelas germinaram, e são
as solenes sardinheiras ardidas
na boca do início. soçobrando a música
produzimos os locais inamovíveis, as persianas
corridas sobre o papel meticuloso das suas
amenas enseadas.

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Ode aos Natais Esquecidos

Eu vinha, pé ante pé, em busca da pequena porta
que dava acesso aos mistérios da noite,
daquela noite em particular, por ser a mais terna
de todas as noites que a minha memória
era capaz de guardar, com letras e sons,
no seu bojo de coisas imateriais e imperecíveis.
Tinha comigo os cães e os retratos dos mortos,
a lembrança de outras noites e de outros dias,
os brinquedos cansados da solidão dos quartos,
os cadernos invadidos pêlos saberes inúteis.
E todos me diziam que era ainda muito cedo,
porque a meia-noite morava já dentro do sono,
no território dos anjos e dos outros seres alados,
hora inatingível a clamar pela nossa paciência,
meninos hirtos de olhos fixos na claridade
enganadora de uma árvore sem nome.

Depois, o meu pai morreu e as minhas ilusões também.
Tudo se tornou gélido, esquivo e distante
como a tristeza de um fantasma confrontado
com a beleza da vida para sempre perdida.
Deixaram de me dar presentes e de dizer
que era o Menino Jesus que os trazia
para premiar a minha grandeza de alma,

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Emboscadas

Foste como quem me armasse uma emboscada
ao sentir-me desatento
dando aquilo em que me dei
foste como quem me urdisse uma cilada
vi-me com tão pouca coisa
depois do que tanto amei

Rasguei o teu sorriso
quatro vezes foi preciso
por não precisares de mim
e depois, quando dormias
fiuz de conta que fugias
e que eu não ficava assim
nesta dor em que me vejo
do nos ver quase no fim

Foste como quem lançasse as armadilhas
que se lançam aos amantes
quando amar foi coisa em vão
foste como quem vestisse as mascarilhas
dos embustes que se tramam
ao cair da escuridão

Resgatei o teu carinho
quatro vezes fiz o ninho
num beiral do teu jardim
e depois, já em cuidado
vi no teu espelho do passado
a tua imagem de mim
e esta dor em que me vejo
de nos ver quase no fim

Foste como quem cumprisse uma vingança
que guardavas às escuras
esperando a sua vez
foste como quem me desse uma bonança
fraquejando à tempestade
de tão frágil que se fez

Resgatei o teu ciúme
quatro vezes deitei lume
ao teu corpo de marfim
e depois,

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Do Tempo ao Coração

E volto a murmurar    Do cântico de amor
gerado na Suméria      às novas europutas
Do muito que me dás ao muito que não dou
mas que sempre conservo entre as coisas mais puras

De uma genebra a mais num bar de Amsterdão
a não perder o pé numa praia da Grécia
De tantas       tantas mãos          que nos passam pelas mãos
a tão poucas que são as que nunca se esquecem

De ter visto o começo e o fim da Via Ápia
De ter atravessado o muro de Berlim
De outros muros que não aparecem no mapa
De outros muros que só aparecem aqui

ao barro deste céu que te modela os ombros
ao sopro deste céu que te solta o cabelo
ao riso deste céu que vem ao nosso encontro
quando sabe que nós não precisamos dele

Da pertinaz presença          E da longevidade
do corvo         do chacal            do louco          do eunuco
ao rouxinol que morre em plena madrugada
à rosa que adormece em caules de um minuto

Do que foi noutro tempo a saúde no campo
à lepra que nos rói a paisagem bucólica
Do tempo          ao coração minado pelo cancro
Dos rins             ao infinito incubado na cólera

Do tempo ao coração            mas com pausa na pele
como «Roma by night» entre dois aviões
como passar o Verão numa vogal aberta
como dizer que não         que já não somos dois

Dos rins ao infinito       A este       que não outro
Ao que rola dos rins    Ao que vai rebentar-te
na câmara blindada e nocturna do útero
E nos transfere o fim para um pouco mais tarde

Da curva de entretanto       à entrada do poço
De soletrar em mim       a ler       nas tuas mãos
como é rápido       e lento      e recto       e sinuoso
o percurso que vai do tempo ao coração.

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Aos Poetas

Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos…
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar…

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.

E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.

Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,

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Amor Místico

Quando a minha alma nasceu
Para onde olhou primeiro,
E viu tudo um nevoeiro,
Foi lá cima para o céu…
Que a alma nunca lhe passa
De ideia a fonte da graça!

Em toda a ânsia de luz,
Em toda a ânsia de gozo,
Sempre aquele olhar ansioso
Nesse ideal de Jesus…
Nesse bem que não se exprime…
Êxtase de amor sublime!

Olhava da solidão,
Onde se sentia presa,
Com a natural tristeza
Dos ferros de uma prisão…
À espera sempre da hora
Que lhe raiasse a aurora!

Bem a chamavam de cá
Sempre os cuidados do dia;
Ela, que nunca os ouvia,
Olhava, mas para lá…
Donde ela mesmo viera,
Donde todo o bem se espera!

Um dia (nem eu sei qual,
Que em suma foi isso há tanto!)
Vê com uns olhos de espanto
Romper-se a névoa geral;
E como um sol recortado
Nesse mar enevoado…

E dentro desse clarão,
Como em círculo de prata,
Que imagem se lhe retrata,
Fosse verdade ou visão?

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Vi Jesus Cristo Descer à Terra

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,

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Rosto Afogado

Para sempre um luar de naufrágio
anunciará a aurora fria.
Para sempre o teu rosto afogado,
entre retratos e vendedores ambulantes,
entre cigarros e gente sem destino,
flutuará rodeado de escamas cintilantes.

Se me pudesse matar,
seria pela curva doce dos teus olhos,
pela tua fronte de bosque adormecido,
pela tua voz onde sempre amanhecia,
pelos teus cabelos onde o rumor da sombra
era um rumor de festa,
pela tua boca onde os peixes se esqueciam
de continuar a viagem nupcial.
Mas a minha morte é este vaguear contigo
na parte mais débil do meu corpo,
com uma espinha de silêncio
atravessada na garganta.

Não sei se te procuro ou se me esqueço
de ti quando acaso me debruço
nuns olhos subitamente acesos
ao dobrar de uma esquina,
na boca dos anjos embriagados
de tanta solidão bebida pelos bares,
nas mãos levemente adolescentes
poisadas na indolência dos joelhos.
Quem me dirá que não é verdade
o teu rosto afogado, o teu rosto perdido,
de sombra em sombra, nas ruas da cidade?

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Agora me Sinto Alegre e Inspirado

Agora me sinto alegre e inspirado em chão clássico;
Mundo de outrora e de hoje mais alto e atraente me
fala.
Aqui sigo eu o conselho, folheio as obras dos velhos
Com mão diligente, cada dia com novo prazer.
Mas, noites fora, Amor me mantém noutra ocupação;
Se apenas meio me instruo, dobrada é minha ventura.
E acaso não é instruir-me, quando as formas dos seios
Adoráveis espio e a mão pelas ancas passeio?
Compreendo então bem o mármore; penso e comparo,
Vejo com olhar tacteante, tacteio com mão que vê.
E se a Amada me rouba algumas horas do dia,
Em recompensa me dá as horas todas da noite.
Nem sempre beijos trocamos; falamos sensatos;
Se o sono a assalta, fico eu deitado a pensar muitas
coisas.
Vezes sem conto eu tenho também poetado em seus
braços
E baixo contado, com mão dedilhante, a medida
hexamétrica
No seu dorso. Em sono adorável respira,
E o seu hálito o peito me acende até à raiz.
O Amor atiça a candeia entretanto e pensa nos tempos
Em que aos Triúnviros seus o mesmo serviço prestava.

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arte poética

o poema não tem mais que o som do seu sentido,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,
poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva
fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil
árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura
de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes
e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não
se escrevem, Lê-se país e mar e céu esquecido e
memória, lê-se silêncio, sim tantas vezes, poema lê-se silêncio,
lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu
olhar doce de menina, silêncio ao domingo entre as conversas,
silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio
de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema
calado, quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, em
segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.
o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz,

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Depois de Te Haver Criado, a Natureza Pasmou

A mãe, que em berço dourado
Pôs teu corpo cristalino,
É sup’rior ao Destino,
Depois de te haver criado.
Quando Amor, o Nume alado,
Tua infância acalentou,
Quando os teus dias fadou,
Minha Lília, minha amada,
A mãe ficou encantada,
A Natureza pasmou.

Deve dar breve cuidado,
Motivar grande atenção,
A um Deus a criação,
Depois de te haver criado.
Deve de ser refinado
O engenho que ele mostrar
Desde o ponto em que criar;
Cuide nisto a omnipotência,
Porque, ao ver a sua essência,
A Natureza pasmou.

Ao mesmo Céu não é dado
(Bem que tanto poder goza)
Criar coisa tão formosa
Depois de te haver criado.
Naquele instante dourado,
Em que teus dotes formou,
Apenas os completou,
Arengando-lhe o Destino,
Em um êxtase divino
A Natureza pasmou.

O Céu nos tem outorgado
Quanto outorgar-nos podia;
O Céu que mais nos daria
Depois de te haver criado?
Ninfa, das Graças traslado,
Ninfa, de que escravo sou,
Jove em ti se enfeitiçou,

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Os Amantes

Amor, é falso o que dizes;
Teu bom rosto é contrafeito;
Busca novos infelizes
Que eu inda trago no peito
Mui frescas as cicatrizes;

O teu meu é mel azedo,
Não creio em teu gasalhado,
Mostras-me em vão rosto ledo;
Já estou muito escaldado,
Já d’águas frias hei medo.

Teus prémios são pranto e dor;
Choro os mal gastados anos
Em que servi tal senhor,
Mas tirei dos teus enganos
O sair bom pregador.

Fartei-te assaz a vontade;
Em vãos suspiros e queixas
Me levaste a mocidade,
E nem ao menos me deixas
Os restos da curta idade?

És como os cães esfaimados
Que, comendo os troncos quentes
Por destro negro esfolados,
Levam nos ávidos dentes
Os ossos ensanguentados.

Bem vejo a aljava dourada
Os ombros nus adornar-te;
Amigo, muda de estrada,
Põe a mira em outra parte
Que daqui não tiras nada.

Busca algum fofo morgado
Que, solto já dos tutores,
Ao domingo penteado,
Vá dizendo à toa amores
Pelas pias encostado;

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A Vida Passa como se Temêssemos

Deixemos, Lídia, a ciência que não põe
Mais flores do que Flora pelos campos,
Nem dá de Apolo ao carro
Outro curso que Apolo.

Contemplação estéril e longínqua
Das coisas próximas, deixemos que ela
Olhe até não ver nada
Com seus cansados olhos.

Vê como Ceres é a mesma sempre
E como os louros campos intumesce
E os cala prás avenas
Dos agrados de Pã.

Vê como com seu jeito sempre antigo
Aprendido no orige azul dos deuses,
As ninfas não sossegam
Na sua dança eterna.

E como as heniadríades constantes
Murmuram pelos rumos das florestas
E atrasam o deus Pã.
Na atenção à sua flauta.

Não de outro modo mais divino ou menos
Deve aprazer-nos conduzir a vida,
Quer sob o ouro de Apolo
Ou a prata de Diana.

Quer troe Júpiter nos céus toldados.
Quer apedreje com as suas ondas
Netuno as planas praias
E os erguidos rochedos.

Do mesmo modo a vida é sempre a mesma.
Nós não vemos as Parcas acabarem-nos.

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Romance de Dubrovnik

São estas casas de cinza
De cinza petrificada
É como se aqui a vida
tivesse jogado às cartas
e só a morte saíra
ganhando em cada jogada
É esta rua comprida
mas que se chama Platza
(embora em eslava grafia
se escreva apenas Placa)
e que na Ragusa antiga
já dois mundos separava
De um lado terra latina
e do outro terra bárbara
São as verdes gelosias
são as muralhas douradas
a segredarem que a vida
se inda quisesse ganhava
É agora ao meio-dia
a Porta Pile empilhada
E são cachos de turistas
trepando pelas muralhas
tirando fotografias
contudo não vendo nada
São fileiras de boutiques
São cafés sob as arcadas
É tudo a fingir que a vida
não se dá por derrotada
É no porto a maresia
quando mais avança a tarde
incrustada em cada esquina
suspensa de cada iate
Mas das naves bizantinas
é que ela sente saudades
e das galeras esguias
que Veneza lhe enviava
se bem que tal nostalgia
inda hoje a sobressalte
Nenhum sabor tem a vida
se a morte a não acicata
E são argolas vazias
as que há no porto à entrada
e de onde outrora pendiam
correntes sempre de guarda
Quem aliás adivinha
as marítimas estradas
que deste porto saíam
que neste nó se cruzavam
Com certeza agora vivem
na tinta azul de outros mapas
Ou permanecem cativas
Ou ficaram bloqueadas
São em redor tantas ilhas
tanta rocha tanta escarpa
tantas flutuantes ravinas
Mas quando a noite se abate
não são mais do que faíscas
no mar de prata lavrada
E já a Lua surgia
na sua rica dalmática
Nem mais a preceito vinha
do que no céu da Dalmácia
Será que o fulgor da vida
vem da morte iluminada
Subo ao monte Zarkovica
(Na língua serbo-croata
deve ler-se Djarkovitza)
e à sombra desta latada
bebo um copo de mastika
olho de novo a cidade
Ó memória empedernida
de uma divina morada
Ó ferradura de cinza
de algum cavalo com asas
Ó mediterrânea figa
mais propriamente adriática
que foi feita por Posídon
e no litoral deixada
O que a morte à vida ensina
através dos deuses passa
Mas não é só nas ruínas
que fica a sua pegada

Vida

Vida:
sensualíssima mulher de carnes maravilhosas
cujos passos são horas
cadenciadas
rítmicas
fatais.
A cada movimento do teu corpo
dispersam asas de desejos
que me roçam a pele
e encrespam os nervos na alucinação do «nunca mais».
Vou seguindo teus passos
lutando e sofrendo
cantando e chorando
e ficam abertos meus braços:
nunca te alcanço!
Meu suplício de Tântalo.
Envelheço…
E tu, Vida, cada vez mais viçosa
na oscilação nervosa
das tuas ancas fecundas e sempre virgens!
À punhalada dilacero a folhagem
e abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho.
Humildemente se rasga e avilta
no roçar dos espinhos
minha carne dorida.
E quando julgo chegada a hora
meu abraço de posse fica escancarado no ar!
Olímpica
firme
gloriosa
tu passas e não te alcanço, Vida.
Caio suado de borco
no lodo…
O vento da noite badala nos ramos
sarcasmos canalhas.
Não avisto a vida!
Tenho medo, grito.
Creio em Deus e nos fantásticos ecos
do meu grito
que vêm de longe e de perto
do sul e do norte
que me envolvem
e esmagam:
— maldita selva,

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Saudade

Tu és o cálix;
Eu, o orvalho!
Se me não vales,
Eu o que valho?

Eu se em ti caio
E me acolheste
Torno-me um raio
De luz celeste!

Tu és o collo
Onde me embalo,
E acho consolo,
Mimo e regalo:

A folha curva
Que se aljofara,
Não d’agoa turva,
Mas d’agoa clara!

Quando me passa
Essa existencia,
Que é toda graça,
Toda innocencia,

Além da raia
D’este horizonte—
Sem uma faia,
Sem uma fonte;

O passarinho
Não se consome
Mais no seu ninho
De frio e fome,

Se ella se ausenta,
A boa amiga,
Ah! que o sustenta
E que o abriga!

Sinto umas magoas
Que se confundem
Com as que as agoas
Do mar infundem!

E quem um dia
Passou os mares
É que avalia
Esses pezares!

Só quem lá anda
Sem achar onde
Sequer expanda
A dôr que esconde;

Longe do berço,

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Atravessa Esta Paisagem o Meu Sonho

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas…

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado…
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol…

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo…
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro…

Não sei quem me sonho…
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse
desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele
porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim,

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Chove ? Nenhuma Chuva Cai…

Chove? Nenhuma chuva cai…
Então onde é que eu sinto um dia
Em que ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia ?

Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu…

E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento…

E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro… E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim…

Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas…

No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos,

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Purinha

O Espirito, a Nuvem, a Sombra, a Chymera,
Que (aonde ainda não sei) neste mundo me espera
Aquella que, um dia, mais leve que a bruma,
Toda cheia de véus, como uma Espuma,
O Sr. Padre me dará p’ra mim
E a seus pés me dirá, toda corada: Sim!
Ha-de ser alta como a Torre de David,
Magrinha como um choupo onde se enlaça a vide
E seu cabello em cachos, cachos d’uvas,
E negro como a capa das viuvas…
(Á maneira o trará das virgens de Belem
Que a Nossa Senhora ficava tão bem!)
E será uma espada a sua mão,
E branca como a neve do Marão,
E seus dedos serão como punhaes,
Fuzos de prata onde fiarei meus ais!
E os seus seios serão como dois ninhos,
E seus sonhos serão os passarinhos,
E será sua bocca uma romã,
Seus olhos duas Estrellinhas da Manhã!
Seu corpo ligeiro, tão leve, tão leve,
Como um sonho, como a neve,
Que hei-de suppor estar a ver, ao vel-a,
Cabrinhas montezas da Serra da Estrella…
E ha-de ser natural como as hervas dos montes
E as rolas das serras e as agoas das fontes…

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