Poemas sobre Maneiras de Álvaro de Campos

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Poemas de maneiras de Álvaro de Campos. Leia este e outros poemas de Álvaro de Campos em Poetris.

Ode Triunfal

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,

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A Sensibilidade Humanizada

Que lindos olhos de azúl inocente os do pequenito do agiota!
Santo Deus, que entroncamento esta vida!
Tive sempre, feliz ou infelizmente, a sensibilidade humanizada.
E toda a morte me doeu sempre pessoalmente,
Sim, não só pelo mistério de ficar inexpressivo o orgânico,
Mas de maneira directa, cá do coração.

Como o sól doura as casas dos réprobros!
Poderei odiá-los sem desfazer no sol?

Afinal que coisa a pensar com o sentimento distraído
Por causa dos olhos de criança de uma criança …

Psiquetipia

Símbolos. Tudo símbolos
Se calhar, tudo é símbolos…
Serás tu um símbolo também?

Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas
Postas, com boas maneiras inglesas, sobre a toalha da mesa.
Pessoas independentes de ti…
Olho-as: também serão símbolos?
Então todo o mundo é símbolo e magia?
Se calhar é…
E por que não há de ser?

Símbolos…
Estou cansado de pensar…
Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham.
Sorris, sabendo bem em que eu estava pensando…

Meu Deus! e não sabes…
Eu pensava nos símbolos…
Respondo fielmente à tua conversa por cima da mesa…
“It was very strange, wasn’t it?”
“Awfully strange. And how did it end?”
“Well, it didn’t end. It never does, you know.”
Sim, you know… Eu sei…
Sim eu sei…
É o mal dos símbolos, you know.
Yes, I know.
Conversa perfeitamente natural… Mas os símbolos?
Não tiro os olhos de tuas mãos… Quem são elas?
Meu Deus! Os símbolos… Os símbolos…

Aproveitar o Tempo

Aproveitar o tempo!
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha…
O trabalho honesto e superior…
O trabalho à Virgílio, à Mílton…
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!

Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos – nem mais nem menos –
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)…
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil.
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos –
Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.

Verbalismo…
Sim, verbalismo…
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça…
Não ter um acto indefinido nem factício…
Não ter um movimento desconforme com propósitos…
Boas maneiras da alma…
Elegância de persistir…

Aproveitar o tempo!

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A Melhor Maneira de Viajar é Sentir

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d’Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.

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Opiário

Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro

É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.

Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.

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O Tumulto

O tumulto concentrado da minha imaginação intelectual…
Fazer filhos à razão prática, como os crentes enérgicos…
Minha juventude perpétua
De viver as coisas pelo lado das sensações e não das responsabilidades.
(Álvaro de Campos, nascido no Algarve, educado por um tio-avô, padre,
que lhe instilou um certo amor às coisas clássicas.) (Veio para Lisboa muito novo …)
A capacidade de pensar o que sinto, que me distingue do homem vulgar
Mais do que ele se distingue do macaco.
(Sim, amanhã o homem vulgar talvez me leia e compreenda a substância do meu ser,
Sim, admito-o,
Mas o macaco já hoje sabe ler o homem vulgar e lhe compreende a substância do ser.)

Se alguma coisa foi por que é que não é
Ser não é ser?

As flores do campo da minha infância, não as terei eternamente,
Em outra maneira de ser?
Perderei para sempre os afetos que tive, e até os afetos que pensei ter?
Há algum que tenha a chave da porta do ser, que não tem porta,
E me possa abrir com razões a inteligência do mundo?

Ode Marítima

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.

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Dois Excertos de Odes

(Fins de duas odes, naturalmente)

I

Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lentejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,

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