Canção
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…
Poemas
2662 resultadosIrmão
Eu não fiz uma revolução.
Mas me fiz irmão de todas as revoluções.
Eu fiquei irmão de muitas coisas no mundo.
Irmão de uma certa camisa.
Uma certa camisa que era de um gesto de céu
e com certo carinho me vestia, como se me
vestisse de árvore e de nuvens.
Eu fiquei irmão de uma vaca, como se ela
também sonhasse. Fiquei irmão de um vira-lata
com o brio com que ele também me abraçava.
Fiquei irmão de um riacho, que é nome
de rio pequeno, um pequeno que cabe
todo dentro de mim, me falando,
me beijando, me lambendo, me lembrando.
Brincava e me envolvia, certos dias eu
girava em torno do redemoinho do cachorro
e do riacho e da vaca, sem às vezes saber
se estava beijando o riacho, o cachorro
ou a vaca, com um grande céu
me entornando, com um grande céu
com a vaca no lombo e com o cão,
com o riacho rindo de nós todos.
Eu fiquei irmão de livros, de gentes.
Eu fiquei irmão de uma certa montanha.
Madrigal Excentrico
Tu que não temes a Morte,
Nem a sombra dos cyprestes,
Escuta, Lyrio do Norte,
Os meus canticos agrestes:……………………………………
……………………………………
……………………………………
……………………………………Tu ignoras os desgostos
D’um coração torturado,
Mais tristes do que os soes postos,
Ou de que um bobo espancado!Eu bem sei, ó Musa louca
Que não conheces a magoa…
E tens um riso na boca
Como um cravo aberto n’agua…Eu bem sei… bem sei que ris
Dos meus madrigaes modernos.
Sem cuidar, ó flor de liz!
Que hão de chegar-te os invernos!Que nos corre a Mocidade,
Qual folha verde do val,
E ha de vir-te a tempestade,
Ó branco lyrio real!Que has de ser como a açucena
Varrida pelo nordeste…
E os prantos da minha pena
Que hão de regar teu cypreste!Que ha de a terra agreste e dura
Servir-te de ultimo leito…
E a pedra da sepultura
Quebrar teu corpo perfeito!E has de, emfim, ser devorada
Na fria noute,
O Amor Limitado
Algum homem indigno de ser possuidor
De amor velho ou novo, sendo ele próprio falso ou fraco,
Pensou que a sua dor e vergonha seriam menores
Se a sua ira sobre as mulheres descarregasse.
E então uma lei nasceu:
Que cada uma um só homem conhecesse.
Mas são assim as outras criaturas?São o sol, a lua, as estrelas proibidos por lei
De sorrir para onde lhes apetece, ou de esbanjar a sua luz?
Divorciam-se os pássaros, ou são censurados
Se abandonam o seu par, ou dormem fora uma noite?
Os animais não perdem as suas pensões
Ainda que escolham novos amantes,
Mas nós fizémo-nos piores do que eles.Quem já armou belos navios para ancorar nos portos,
Em vez de buscar novas terras, ou negociar com todos?
Ou construiu belas casas, plantou árvores e arbustos,
Apenas para as trancar, ou então deixá-los cair?
O Bom não é bom, a não ser
Que mil coisas possua,
Mas arruína-se com a avidez.Tradução de Helena Barbas
Adeus
Sim, vou partir.
E não levo saudade
De ninguém
Nem em ti penso agora!
Julgavas que a tristeza desta hora
Fosse maior que a firme vontade
Que eu pus em destruir
O luminoso fio de ternura
Que me prendia ao teu olhar?
Julgaste mal:
Eu sei amar,
Mas meu amor
O que eu não sei
É ser banal!Mas por que vim eu escrever-te ainda?
Nem eu sei!
Talvez somente
O hábito cortês da despedida
– e o hábito faz lei!Choro?! Oh, sim , perdidamente!
Mas sabes tu, por que este pranto
Assim amargo e soluçado vem?
É que na hora da partida
Eu nunca pude sem chorar
Dizer adeus a ninguém!
Alegria da criação
Plantei a semente da palavra
Antes da cheia matar o meu gado
Ensinei ao meu filho a lavra e a colheita
num terreno ao lado
a palavra rompeu
Cresceu como a baleia
no silêncio da noite à lua cheia
Vi mudar estações
Soprar a ventania
Brilhar de novo o sol
sobre a baía
Fui um bom engenheiro
Um bom castor
Amei a minha amada
Com amor
De nada me arrependo
Só a vida
me ensinou a cantar
esta cantiga
A Solidão é Sempre Fundamento da Liberdade
A solidão é sempre fundamento
da liberdade. Mas também do espaço
por onde se desenvolve o alargar do tempo
à volta da atenção estrita do acto.
Húmus, e alma, é a solidão. E vento,
quando da imóvel solenidade clama
o mudo susto do grito, ainda suspenso
do nome que vai ser sua prisão pensada.
A menos que esse nome seja estremecimento
— fruto de solidão compenetrada
que, por dentro da sombra, nomeia o movimento
de cada corpo entrando por sua luz sagrada.
Esqueço-me das Horas Transviadas
PASSOS DA CRUZ
Esqueço-me das horas transviadas
o Outono mora mágoas nos outeiros
E põe um roxo vago nos ribeiros…
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas…Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgíaco… Trigueiros
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas…No claustro seqüestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convésNo meu cansaço perdido entre os gelos
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância…
Que Feliz Destino o Meu
MOTE
«Que feliz destino o meu
Desde a hora em que te vi;
Julgo até que estou no céu
Quando estou ao pé de ti.»GLOSAS
Se Deus te deu, com certeza,
Tanta luz, tanta pureza,
P’rò meu destino ser teu,
Deu-me tudo quanto eu queria
E nem tanto eu merecia…
Que feliz destino o meu!Às vezes até suponho
Que vejo através dum sonho
Um mundo onde não vivi.
Porque não vivi outrora
A vida que vivo agora
Desde a hora em que te vi.Sofro enquanto não te veja
Ao meu lado na igreja,
Envolta num lindo véu.
Ver então que te pertenço,
Oh! Meu Deus, quando assim penso,
Julgo até que ‘stou no céu.É no teu olhar tão puro
Que vou lendo o meu futuro,
Pois o passado esqueci;
E fico recompensado
Da perda desse passado
Quando estou ao pé de ti.
Versos para a Patrícia
1. Ilha
Tenho a sede das ilhas
e esquece-me ser terraMeu amor, aconchega-me
meu amor, mareja-meDepois, não
me ensines a estrada.A intenção da água é o mar
a intenção de mim és tu.2. Véspera
Há um perfume
que trabalha em mim
e me acende,
antigo,
sobre a poeiraHá um rosto
que regressa à fonte
água readormecendoE só hoje reparo
o labor das nuvens
corais solares
arquitectando o céuPássaros brancos
vão pousando
na varanda dos teus olhosSó hoje enfrento o sol
fogo imóvel,
labareda de águaAndemos, meu amor,
de coração descalço sobre o sol
Bel
Hálito da terra depois da chuva:
cálida ternura
aflorando
na espessura
do lábioTeu corpo
leveza que pesa
um saber sábio
secreto
da NaturezaPor isso os bichos te amam
em suas falas naturais:
os felinos
os caprinos
e os poetas – bichos marginais
Da Condição Humana
Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
A humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É por sermos iguais que nos esquecemos
Que foi do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventre que surgimos.
Testamento Aberto
Só para ver curar minhas pernas partidas
Nas dores eternas
Dos saltos gorados,
Eu amo a aparente inconsciência dos loucos,
Embora fique aos poucos nos meus saltos
Desabridos e falhados.Apraz-me, no espelho, esta face esmagada,
À força de querer transpor o além
Da minha porta fechada…Porém,
Seja o que for, que seja,
Se uma CERTEZA alcanço
E uma mulher me beija.Que importa
Que eu fique molemente olhando a minha porta
Aberta,
Ou que eu parta e a morte me espreite
Num desfiladeiro?…
E quem virá chorar e quem virá,
Se a morte que vier for a de lá
Certeira e minha…
E merecida como um sono que se dorme
Após a noite perdida?…E que piedade anda a escrever um frágil,
Na embalagem dos ossos
Que trago emprestados…
Que deixarei ficar ao sol e à chuva
E que serão limados
No entulho dos calhaus que também foram rocha?…Para quê, se mil vezes provoco
Os tombos do chegar e do partir?!
–
Retratos do Brasil.
São Paulo (SP)
Quinze milhões e meio de capiaus juntos.
Sendo alguns capiais de vanguarda.
E outros doutorados pela USP.Rio de Janeio (RJ)
Os nossos nordestinos são melhores
do que os nordestinos dos outros.Salvador (BA)
Escritores bermudam no litoral sensual.
Caro escritor:
Nesse calor você merece uma cerveja.Curitiba (PR)
Pinhais.
Pôsteres do polonês papa em plena pólis.
Paredes. Prateleiras. Penteadeiras.
Papa-ceia. Papa-fila. Papa-defunto.
Papada.Belo Horizonte (MG)
O novo shopping-center rouba
meninas bonitas do
ônibus que vai pra Universidade.
Mortalmente Compramos Ter Mais Vida que a Vida
A abelha que, voando, freme sobre
A colorida flor, e pousa, quase
Sem diferença dela
À vista que não olha,Não mudou desde Cecrops. Só quem vive
Uma vida com ser que se conhece
Envelhece, distinto
Da espécie de que vive.Ela é a mesma que outra que não ela.
Só nós — ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte! —
Mortalmente compramos
Ter mais vida que a vida.
Amar
Amar não deve ser desfortuna.
O cio transfunde
a lagartixa e o homem
na criação tenaz.
E o buxo, o pólen
e as primeiras folhas
da vinha virgem. Amor
não tem quaresma,
nela impetuoso regressa e copula.
A Despedida da Morte
Falo de mim porque bem sei que a vida
lava o meu rosto com o suor dos outros,
que também sou, pois sou tudo o que postoao meu redor se cala, e é pedra, ou, água,
cicia apenas — O teu tempo é a trava
que te impede de ter a calma clarado chão de lajes que o sol recobre,
este esperar por tudo que não corre,
nem pára e nem se apressa, e é só estado,e nem sequer murmura: — O que te trazem
é o riso e o lamento, o ser amado
e o roçar cada dia a tua morte,que não repõe em ti o, sem passado,
ficar no teu escuro, pois herdaste
e legas um sussurro, um som de passos,uma sombra, um olhar sobre a paisagem,
memória, cálcio, húmus, eis que o mundo
nada rejeita, sendo pobre e triste
no esplendor que nos dá. A madrugada.
Torniquete
A tômbola anda depressa,
Nem sei quando irá parar –
Aonde, pouco me importa;
O importante é que pare…
– A minha vida não cessa
De ser sempre a mesma porta
Eternamente a abanar…Abriu-se agora o salão
Onde há gente a conversar.
Entrei sem hesitação –
Somente o que se vai dar?
A meio da reunião,
Pela certa disparato,
Volvo a mim a todo o pano:Às cambalhotas desato,
E salto sobre o piano…
– Vai ser bonita a função!
Esfrangalho as partituras,
Quebro toda a caqueirada,
Arrebento à gargalhada,
E fujo pelo saguão…Meses depois, as gazetas
Darão críticas completas,
Indecentes e patetas,
Da minha última obra…
E eu – prà cama outra vez,
Curtindo febre e revés,
Tocado de Estrela e Cobra…
Dies Irae
Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!
Terror de Te Amar
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.