Esparsa
Não vejo o rosto a ninguém,
cuidais que sou, e não sou.
Sombras que não vão nem vêm,
parece que avante vão.
Entre o doente e o são
mente cada passo a espia;
no meio do claro dia
andais entre lobo e cão.
Poemas de Sá de Miranda
8 resultadosO Coração que Vos Vê
O coração que vos vê
aos olhos que vos não vêem
não nos culpem, que não têm
alguma razão porquê.Cada hora este olhos canso
por estes montes arriba
que à vista curta e cativa
tolhem todo seu descanso.
Deixem-nos cegar, que têm
olhando razão porquê:
o coração que lá é
os tristes choram d’aquém.
Por estes Campos sem Fim
Por estes campos sem fim,
onde a vista assim se estende,
que verei, triste de mim,
pois ver-vos se me defende?Todos estes campos cheios
são de saudade e pesar,
que vem para me matar,
debaixo de céus alheios.
Em terra estranha e em ar,
mal sem meio e mal sem fim,
dor que ninguém não entende,
até quão longe se estende
o vosso poder em mim!
Do Passado Arrependido
Do passado arrependido,
seguro doutro erro tal,
seja o perdido, perdido,
e do mal, o menos mal.
Faça-se o que vós mandais:
não nos ouça mais ninguém,
que do mal vosso e do bem,
não sei qual quisesse mais.
O Sol é Grande
O sol é grande, caem co’a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d’alto cai acordar-m’-ia
do sono não, mas de cuidados graves.Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d’amores.Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m’eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!
Antre Tremor e Desejo
Antre tremor e desejo,
Vã espernça e vã dor,
Antre amor e desamor,
Meu triste coração vejo.Nestes extremos cativo
Ando sem fazer mudança,
E já vivi d’esperança
E agora vivo de choro vivo.
Contra mi mesmo pelejo,
Vem d’ua dor outra dor
E d’um desejo maior
Nasce outro mor desejo.
Ó Meus Castelos de Vento
Ó meus castelos de vento
que em tal cuita me pusestes,
como me vos desfizestes!Armei castelos erguidos,
esteve a fortuna queda,
e disse:– Gostos perdidos,
como is a dar tão grã queda!
Mas, oh! fraco entendimento!
em que parte vos pusestes
que então me não socorrestes?Caístes-me tão asinha
caíram as esperanças;
isto não foram mudanças,
mas foram a morte minha.
Castelos sem fundamento,
quanto que me prometestes.
quanto que me falecestes!
Comigo me Desavim
Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.Com dor da gente fugia,
Antes que esta assi crecesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meo espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?