Poemas sobre Vidros de Nuno Júdice

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Poemas de vidros de Nuno Júdice. Leia este e outros poemas de Nuno Júdice em Poetris.

Quotidiano (Reflexão)

Por exemplo, as coisas que faltam neste lugar:
uma enxada para que as mãos não toquem na terra,
um ninho de pardais no canto da relha,
para que um ruído de asas se possa abrigar,
um pedaço de verde no monte que ainda vejo,
por detrás dos prédios que invadem tudo.

Mas se estas coisas estivessem aqui,
também faria falta um copo de água para ver,
através do vidro, um horizonte desfocado;
e ainda os restos de madeira com que,
no inverno, é costume atiçar o fogo
e a imaginação que ele consome.

Como se tudo estivesse no lugar,
pronto para ser usado na data prevista,
sento-me à janela, e fixo a única coisa
que não se move:
o gato, hipnotizado por um olhar
que só ele pressente.

O Amor Eterno

E agora que as mãos da incrédula
rapariga te empurram para a saída,
onde irá chover, de acordo com
a cor do céu, não resistas. Na rua,
onde os ventos se cruzam na esquina,
os que sopram, do norte, de colinas
manchadas pelo inverno, e os que
nascem do rio, trazendo a impressão
húmida do litoral, acende um cigarro,
para que o calor do lume te reconforte
as mãos, avança pelo passeio, enquanto
o frio te deixar, e ouve o canto da água
por baixo de terra: correntes
no limite entre o gelo
e o fogo, uma evaporação de humores,
como se as almas lutassem em busca de
saída, e, no fumo de uma memória
de mesa antiga, tu e essa que amaste,
trocando as frases matinais do re-
encontro. Vidros embaciados pelas
lágrimas da ruptura, perguntas sem
resposta, a casa de luzes
apagadas, como se estivesse vazia – e como
se não soubesses que os destinos se decidem
por cima de nós, onde em cada instante
um deus cansado nos desfaz as inúteis
promessas de eternidade.

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Volta até Mim no Silêncio da Noite

Volta até mim no silêncio da noite
a tua voz que eu amo, e as tuas palavras
que eu não esqueço. Volta até mim
para que a tua ausência não embacie
o vidro da memória, nem o transforme
no espelho baço dos meus olhos. Volta
com os teus lábios cujo beijo sonhei num estuário
vestido com a mortalha da névoa; e traz
contigo a maré cheia da manhã com que
todos os náufragos sonharam.

Plano

Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos, que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

Requiem por Muitos Maios

Conheci tipos que viveram muito. Estão
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de álcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem à sua
beira?

No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde só os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.

E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles – os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer – nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.

Conheci tipos que viveram muito –

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