XIV
Quem deixa o trato pastoril amado
Pela ingrata, civil correspondĂŞncia,
Ou desconhece o rosto da violĂŞncia,
Ou do retiro a paz nĂŁo tem provado.Que bem Ă© ver nos campos transladado
No gĂŞnio do pastor, o da inocĂŞncia!
E que mal Ă© no trato, e na aparĂŞncia
Ver sempre o cortesĂŁo dissimulado!Ali respira amor sinceridade;
Aqui sempre a traição seu rosto encobre;
Um só trata a mentira, outro a verdade.Ali não há fortuna, que soçobre;
Aqui quanto se observa, Ă© variedade:
Oh ventura do rico! Oh bem do pobre!
Sonetos sobre Fortuna de Cláudio Manuel da Costa
5 resultadosLXXV
Clara fonte, teu passo lisonjeiro
Pára, e ouve-me agora um breve instante;
Que em paga da piedade o peito amante
Te será no teu curso companheiro.Eu o primeiro fui, fui o primeiro,
Que nos braços da ninfa mais constante
Pude ver da fortuna a face errante
Jazer por glĂłria de um triunfo inteiro.Dura mĂŁo, inflexĂvel crueldade
Divide o laço, com que a glória, a dita
Atara o gosto ao carro da vaidade:E para sempre a dor ter n’alma escrita,
De um breve bem nasce imortal saudade,
De um caduco prazer mágoa infinita.
V
Se sou pobre pastor, se nĂŁo governo
Reinos, nações, provĂncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verĂŁo, outono, estio, inverno;Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mĂŞs, e o ano;Seja embora prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruĂdo.
XXXII
Se os poucos dias, que vivi contente,
Foram bastantes para o meu cuidado,
Que pode vir a um pobre desgraçado,
Que a idéia de seu mal não acrescente!Aquele mesmo bem, que me consente,
Talvez propĂcio, meu tirano fado,
Esse mesmo me diz, que o meu estado
Se há de mudar em outro diferente.Leve pois a fortuna os seus favores;
Eu os desprezo já; porque é loucura
Comprar a tanto preço as minhas dores:Se quer, que me não queixe, a sorte escura,
Ou saiba ser mais firme nos rigores,
Ou saiba ser constante na brandura.
LXIII
Já me enfado de ouvir este alarido,
Com que se engana o mundo em seu cuidado;
Quero ver entre as peles, e o cajado,
Se melhora a fortuna de partido.Canse embora a lisonja ao que ferido
Da enganosa esperança anda magoado;
Que eu tenho de acolher-me sempre ao lado
Do velho desengano apercebido.Aquele adore as roupas de alto preço,
Um siga a ostentação, outro a vaidade;
Todos se enganam com igual excesso.Eu não chamo a isto já felicidade:
Ao campo me recolho, e reconheço,
Que não há maior bem, que a soledade.