Vossos Olhos, Senhora, Que Competem
Vossos olhos, Senhora, que competem
co Sol em fermosura e claridade,
enchem os meus de tal suavidade
que em lágrimas, de vê-los, se derretem.Meus sentidos vencidos se sometem
assi cegos a tanta majestade;
e da triste prisão, da escuridade,
cheios de medo, por fugir remetem.Mas se nisto me vedes por acerto,
o áspero desprezo com que olhais
torna a espertar a alma enfraquecida.Ó gentil cura e estranho desconcerto!
Que fará o favor que vós não dais,
quando o vosso desprezo torna a vida?
Sonetos de Luís de Camões
205 resultadosTempo É Já Que Minha Confiança
Tempo é já que minha confiança
se desça de üa falsa opinião;
mas Amor não se rege por razão;
não posso perder, logo, a esperança.A vida, si; que üa áspera mudança
não deixa viver tanto um coração.
E eu na morte tenho a salvação?
Si, mas quem a deseja não a alcança.Forçado é logo que eu espere e viva.
Ah! dura lei de Amor, que não consente
quietação nüa alma que é cativa!Se hei de viver, enfim, forçadamente,
para que quero a glória fugitiva
de üa esperança vã que me atormente?
Quanto Mais vos pago, Mais vos Devo
Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder a vista só com vê-los,
Já não paga o que deve a vosso gesto.Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecê-los,
Dei mais a vida e alma por querê-los;
Donde já me não fica mais de resto.Assim que Alma, que vida, que esperança,
E que quanto for meu, é tudo vosso:
Mas de tudo o interesse eu só o levo.Porque é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho, e quanto posso,
Que quanto mais vos pago, mais vos devo.
Lágrimas de Honesta Piedade e Imortal Contentamento
Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas a alva neve.A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.Jura Amor, que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoidece, se cuida que é verdade.Olhai como Amor gera, em um momento,
De lágrimas de honesta piedade
Lágrimas de imortal contentamento.
Se pena por amar-vos se merece
Se pena por amar-vos se merece,
Quem dela livre está? ou quem isento?
Que alma, que razão, que entendimento
Em ver-vos se não rende e obedece?Que mor glória na vida se oferece
Que ocupar-se em vós o pensamento?
Toda a pena cruel, todo o tormento
Em ver-vos se não sente, mas esquece.Mas se merece pena quem amando
Contínuo vos está, se vos ofende,
O mundo matareis, que todo é vosso.Em mim, Senhora, podeis ir começando,
Que claro se conhece e bem se entende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.
Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
O Céu, A Terra, O Vento Sossegado
O céu, a terra, o vento sossegado…
As ondas, que se estendem pela areia…
Os peixes, que no mar o sono enfreia…
O nocturno silêncio repousado…O pescador Aónio, que, deitado
onde co vento a água se meneia,
chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado:Ondas (dezia), antes que Amor me mate,
torna-me a minha Ninfa, que tão cedo
me fizestes à morte estar sujeita.Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
move-se brandamente o arvoredo;
leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
Se as Penas com que Amor Tão Mal me Trata
Se as penas com que Amor tão mal me trata
Permitirem que eu tanto viva delas,
Que veja escuro o lume das estrelas,
Em cuja vista o meu se acende e mata;E se o tempo, que tudo desbarata,
Secar as frescas rosas, sem colhê-las,
Deixando a linda cor das tranças belas
Mudada de ouro fino em fina prata;Também, Senhora, então vereis mudado
O pensamento e a aspereza vossa,
Quando não sirva já sua mudança.Ver-vos-eis suspirar por o passado,
Em tempo quando executar-se possa
No vosso arrepender minha vingança.
Que Vençais no Oriente tantos Reis
Que vençais no Oriente tantos Reis,
Que de novo nos deis da Índia o Estado,
Que escureçais a fama que hão ganhado
Aqueles que a ganharam de infiéis;Que vencidas tenhais da morte as leis,
E que vencêsseis tudo, enfim, armado,
Mais é vencer na Pátria, desarmado,
Os monstros e as Quimeras que venceis.Sobre vencerdes, pois, tanto inimigo,
E por armas fazer que sem segundo
No mundo o vosso nome ouvido seja;O que vos dá mais fama inda no mundo,
É vencerdes, Senhor, no Reino amigo,
Tantas ingratidões, tão grande inveja.
No Mundo Quis Um Tempo Que Se Achasse
No mundo quis um tempo que se achasse
o bem que por acerto ou sorte vinha;
e, por exprimentar que dita tinha,
quis que a Fortuna em mim se exprimentasse.Mas, por que meu destino me mostrasse
que nem ter esperanças me convinha,
nunca nesta tão longa vida minha
cousa me deixou ver que desejasse.Mudando andei costume, terra e estado,
por ver se se mudava a sorte dura;
a vida pus nas mãos de um leve lenho.Mas (segundo o que o Céu me tem mostrado)
já sei que deste meu buscar ventura,
achado tenho já, que não a tenho.
O Raio Cristalino S’estendia
O raio cristalino s’estendia
pelo mundo, da Aurora marchetada,
quando Nise, pastora delicada,
donde a vida deixava, se partia.Dos olhos, com que o Sol escurecia,
levando a vista em lágrimas banhada,
de si, do Fado e Tempo magoada,
pondo os olhos no Céu, assi dezia:-Nasce, sereno Sol, puro e luzente;
resplandece, fermosa e roxa Aurora,
qualquer alma alegrando descontente;que a minha, sabe tu que, desd’agora,
jamais na vida a podes ver contente,
nem tão triste nenhüa outra pastora.
Ah! Imiga Cruel, Que Apartamento
Ah! imiga cruel, que apartamento
é este que fazeis da pátria terra?
Quem do paterno ninho vos desterra,
glória dos olhos, bem do pensamento?Is tentar da fortuna o movimento
e dos ventos cruéis a dura guerra?
Ver brenhas d’água, e o mar feito em serra,
levantado de um vento e d’outro vento?Mas já que vos partis, sem vos partirdes,
para convosco o Céu tanta ventura,
que seja mor que aquela que esperardes.E só nesta verdade ide segura:
que ficam mais saudades com partirdes,
do que breves desejos de chegardes.
Não Pode Tirar-me as Esperanças
Busque Amor novas artes, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças;
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Pois não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.Mas conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde;
Vem não sei como; e dói não sei porquê.
Vós Só Convosco mesma Andai de Amores
Porque quereis, Senhora, que ofereça
A vida a tanto mal como padeço?
Se vos nasce do pouco que eu mereço,
Bem por nascer está quem vos mereça.Entendei que por muito que vos peça,
Poderei merecer quanto vos peço;
Pois não consente Amor que em baixo preço
Tão alto pensamento se conheça.Assim que a paga igual de minhas dores
Com nada se restaura, mas deveis-ma
Por ser capaz de tantos desfavores.E se o valor de vossos amadores
Houver de ser igual convosco mesma,
Vós só convosco mesma andai de amores.
Por Cima Destas Águas, Forte E Firme
Por cima destas águas, forte e firme,
irei por onde as sortes ordenaram,
pois, por cima de quantas me choraram
aqueles claros olhos, pude vir me.Já chegado era o fim de despedir me,
já mil impedimentos se acabaram,
quando rios de amor se atravessaram
a me impedir o passo de partir me.Passei os eu com ânimo obstinado,
com que a morte forçada e gloriosa
faz o vencido já desesperado.Em que figura, ou gesto desusado,
pode já fazer medo a morte irosa,
a quem tem a seus pés rendido e atado?
Fiou Se O Coração, De Muito Isento
Fiou se o coração, de muito isento,
de si cuidando mal, que tomaria
tão ilícito amor tal ousadia,
tal modo nunca visto de tormento.Mas os olhos pintaram tão a tento
outros que visto tem na fantasia,
que a razão, temerosa do que via,
fugiu, deixando o campo ao pensamento.Ó Hipólito casto, que, de jeito,
de Fedra, tua madrasta, foste amado,
que não sabia ter nenhum respeito:em mim vingou o amor teu casto peito;
mas está desse agravo tão vingado,
que se arrepende já do que tem feito.
Pensamentos, Que Agora Novamente
Pensamentos, que agora novamente
cuidados vãos em mim ressuscitais,
dizei me: ainda não vos contentais
de terdes, quem vos tem, tão descontente?Que fantasia é esta, que presente
cad’hora ante meus olhos me mostrais?
Com sonhos e com sombras atentais
quem nem por sonhos pode ser contente?Vejo vos, pensamentos, alterados
e não quereis, d’esquivos, declarar me
que é isto que vos traz tão enleados?Não me negueis, se andais para negar me;
que, se contra mim estais alevantados,
eu vos ajudarei mesmo a matar me.
Qual tem a borboleta por costume
Qual tem a borboleta por costume,
Que, enlevada na luz da acesa vela,
Dando vai voltas mil, até que nela
Se queima agora, agore se consume,Tal eu correndo vou ao vivo lume
Desses olhos gentis, Aónia bela;
E abraso-me por mais que com cautela
Livrar-me a parte racional presume.Conheço o muito a que se atreve a vista,
O quanto se levanta o pensamento,
O como vou morrendo claramente;Porém, não quer Amor que lhe resista,
Nem a minha alma o quer; que em tal tormento,
Qual em glória maior, está contente.
Tomava Daliana Por Vingança
Tomava Daliana por vingança
da culpa do pastor que tanto amava,
casar com Gil vaqueiro; e em si vingava
o erro alheio e pérfida esquivança.A discrição segura, a confiança,
as rosas que seu rosto debuxava,
o descontentamento lhas secava,
que tudo muda üa áspera mudança.Gentil planta disposta em seca terra,
lindo fruito de dura mão colhido,
lembranças d’outro amor, e fé perjura,tornaram verde prado em dura serra;
interesse enganoso, amor fingido,
fizeram desditosa a fermosura.
Que Pode Já Fazer Minha Ventura
Que pode já fazer minha ventura
que seja para meu contentamento.,
Ou como fazer devo fundamento
de cousa que o não tem, nem é segura?Que pena pode ser tão certa e dura
que possa ser maior que meu tormento?
Ou como receará meu pensamento
os males, se com eles mais se apura?Como quem se costuma de pequeno
com peçonha criar por mão ciente,
da qual o uso já o tem seguro;assi de acostumado co veneno,
o uso de sofrer meu mal presente
me faz não sentir já nada o futuro.