Os Dois Infinitos
Duas coisas enchem a alma de admiração e de respeito sempre renovados e que aumentam à medida que o pensamento mais vezes se concentra nelas: acima de nós, o céu estrelado; no nosso íntimo, a lei moral. Não é necessário buscá-las e adivinhá-las como se estivessem ofuscadas por nuvens ou situadas em região inacessível, para além do meu horizonte; vejo-as ante mim e relaciono-as imediatamente com a consciência da minha existência. A primeira, a partir do lugar que ocupo no mundo exterior, estende a relação do meu ser com as coisas sensíveis a todo esse imenso espaço onde os mundos se sucedem aos mundos e os sistemas aos sistemas e a toda a duração ilimitada dos seus movimentos periódicos. A segunda parte do meu invisível eu, da minha personalidade e do meu posto num mundo que possui a verdadeira infinitude, mas no qual o entendimento mal pode penetrar e ao qual reconheço estar vinculado por uma relação não apenas contingente, mas universal e necessária (relação que também alargo a todos esses mundos visíveis).
Numa, a visão de uma infinidade de mundos quase aniquila a minha importância, na medida em que me considero uma criatura animal que, depois de ter (não se sabe como) gozado a vida durante um breve lapso de tempo,
Passagens sobre Matéria
253 resultadosA matéria em si não possui poder algum. Quem empresta à matéria força para dominar o homem é o próprio homem.
O dia em que se chegar a compreender a vida como uma função da matéria inerte será para descobrir que ela possui propriedades diferentes das que lhe atribuíam.
A Força de Toda a Decisão Reside no Tempo
A força de toda a decisão reside no tempo; as situações e as matérias rolam e mudam sem cessar. Na minha vida incorri em alguns erros graves e importantes, não por falta de tino mas por falta de sorte. Há nos objectos que manejamos partes secretas e imprevisíveis, principalmente na natureza dos homens; características mudas, não aparentes, às vezes desconhecidas do próprio possuidor, que se manifestam e despertam em circunstâncias imprevistas. Se a minha prudência não as pôde penetrar e profetizar, não a recrimino por isso; a sua tarefa atém-se aos seus limites; o desfecho derrota-me; e se ele favorecer o partido que rejeitei, não há remédio; não me culpo a mim; acuso a minha fortuna, não a minha obra; isso não se chama arrependimento.
São numerosas as cátedras, mas raros os sábios e distintos professores. Numerosas e amplas são as salas de conferência, mas pouco numerosa a gente moça, que sinceramente aspira à verdade e à justiça. É numerosa a matéria bruta que a natureza oferece; o que raramente produz, porém, é matéria delicada.
Não és os Outros
Não há-de te salvar o que deixaram
Escrito aqueles que o teu medo implora;
Não és os outros e encontras-te agora
No meio do labirinto que tramaramTeus passos. Não te salva a agonia
De Jesus ou de Sócrates ou o forte
Siddharta de ouro que aceitou a morte
Naquele jardim, ao declinar o dia.Também é pó cada palavra escrita
Por tua mão ou o verbo pronunciado
Pela boca. Não há pena no FadoE a noite de Deus é infinita.
Tua matéria é o tempo, o incessante
Tempo. E és cada solitário instante.Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Os Órgãos de Comunicação
Condições da liberdade de pensamento, da existência da opinião pública, do desenvolvimento da consciência da sociedade, da fiscalização dos atos do poder, a livre expressão e o direito à informação exigem aos órgãos de comunicação de massas que eles pratiquem a transparência e respeitem o pluralismo político. É o que deles esperamos confiadamente. (…) Todos os órgãos de informação, desde que não sejam propriedade de determinado partido, a todos têm de estar abertos. Nessa matéria são inúmeras as nossas razões de queixa.
Literatura e Imortalidade
Que pensa dos nossos escritores do momento, prosadores, poetas e dramaturgos?
Citar é ser injusto. Enumerar é esquecer. Não quero esquecer ninguém de quem me não lembre. Confio ao silêncio a injustiça. A ânsia de ser completo leva ao desespero de o não poder ser. Não citarei ninguém. Julgue-se citado quem se julgue com direito a sê-lo. Ressalvo assim todos. Lavo as mãos, como Pilatos; lavo-as, porém, inutilmente porque é sempre inutilmente que se faz um gesto simplificador. Que sei eu do presente, salvo que ele é já o futuro? Quem são os meus contemporâneos? Só o futuro o poderá dizer. Coexiste comigo muita gente que vive comigo apenas porque dura comigo. Esses são apenas os meus conterrâneos no tempo; e eu não quero ser bairrista em matéria de imortalidade. Na dúvida, repito, não citarei ninguém.
Transcedentalismo
Já sossega, depois de tanta luta,
Já me descansa em paz o coração.
Caí na conta, enfim, de quanto é vão
O bem que ao Mundo e à Sorte se disputa.Penetrando, com fronte não enxuta,
No sacrário do templo da Ilusão,
Só encontrei, com dor e confusão,
Trevas e pó, uma matéria bruta…Não é no vasto Mundo – por imenso
Que ele pareça à nossa mocidade –
Que a alma sacia o seu desejo intenso…Na esfera do invisível, do intangível,
Sobre desertos, vácuo, soledade,
Voa e paira o espírito impassível!
Os Gostos
A palavra «gosto» tem vários significados e é fácil o engano. Há uma diferença entre aquele gosto que nos leva a escolher coisas e aquele que nos leva a conhecer e discernir as qualidades quando se segue as regras. Podemos gostar de comédias sem ter um gosto tão apurado e delicado que nos permita ajuizar do seu valor, como podemos ter o bom gosto para emitir juízos sobre as comédias, sem gostar desse género dramático. Existe um tipo de gosto que nos aproxima imperceptivelmente do que temos à nossa frente, há outros que nos prendem pela sua força e duração.
Também há pessoas que têm mau gosto em tudo, outras só nalgumas coisas, mas ambos os casos têm esse direito, no que toca ao alcance que cada um tem. Outros ainda têm gostos particulares, que sabem que são maus, sem deixarem de segui-los. Há aqueles que têm gostos imprecisos e estes deixam que o acaso decida por eles. Mudam com ligeireza e ficam contentes ou maçam-se com o que os seus amigos dizem. Outros são sempre previstos, sendo escravos de todos os seus gostos, respeitando-os em todas as matérias. Há quem seja sensível ao bem e que se choque com o que é mau.
Que Preceitos Ministrar com o Nosso Semelhante?
Passemos a outra questão: o modo de tratarmos com o nosso semelhante. Como devemos agir, que preceitos ministrar? Que não derramemos sangue humano? Ao nosso semelhante devemos fazer o bem: aconselhar a não lhe fazer mal, que ridículo! Até parece que encontrar algum homem que não seja uma fera para os outros já é coisa merecedora de encómios… Vamos aconselhar a que se estenda a mão ao náufrago, se indique o caminho a quem anda perdido, se divida o pão com o esfomeado? Mas para que hei-de eu enumerar todos os actos que devemos ou não devemos praticar quando posso numa só frase resumir todos os nossos deveres para com os outros? Tudo quanto vês, este espaço em que se contém o divino e o humano, é uno, e nós não somos senão os membros de um vasto corpo. A natureza gerou-nos como uma só família, pois nos criou da mesma matéria e nos dará o mesmo destino; a natureza faz-nos sentir amor uns pelos outros, e aponta-nos a vida em sociedade. A natureza determinou tudo quanto é lícito e justo; pela própria lei da natureza, é mais terrível fazer o mal do que sofrê-lo; em obediência à natureza, as nossas mãos devem estar prontas a auxiliar quem delas necessite.
Xácara do Infinito
Fazia papa-luaça
com lama azul dos paúis;
e embaciava a vidraça;
ou de olhos baços, azuis,
parados, largos, serenos,
como o silêncio dos mudos,
ou fitos, picos, pequenos,
venenos de ângulos agudos.Ou gargalhava estridente
como um riscar de repente
de uma faúlha de luz
em escuros de urros e uuus
que arrefecia os cabelos!
E a dissonância em novelos
rolava fundo e medonho
a meio do chão:.. Catrapuz!…
como um vómito de luz
a estoirar dentro dum sonho!Ou escancarava a vidraça
a rir pedradas de lata;
mas logo o feixe-desfeixe
porque a lata se desata
e cai em pata de pata
na lájea das cousas mortas
das mortas noites sem portas!E logo a Noite corria,
e a vista via… – não via:
porque entre o ver e o não ver
há uma distância a correr
que pode ser… – ou não ser
uma distância a valer!Aquele espaço intervalo
dum cabelo ou duma unha
à sensação de ter unha
é uma distância a cavalo
como a distância da unha
ao movimento da unha!
Aborrecido de Estudar
Enfastiavam-me as aulas, salvo as de literatura — que aprendia de cor — e tinha nelas um protagonismo único. Aborrecido de estudar, deixava tudo à mercê da boa sorte. Tinha um instinto próprio para pressentir os pontos álgidos de cada matéria e quase adivinhar os que mais interessavam aos professores para não estudar o resto. A realidade é que não entendia por que devia sacrificar engenho e tempo em matérias que não me interessavam e, pela mesma razão, não me iam servir para nada numa vida que não era minha.
Atrevi-me a pensar que a maioria dos meus professores me classificava mais pela minha maneira de ser do que pelos meus exames. Salvavam-me as minhas respostas imprevistas, as minhãs ideias dementes, as minhas invenções irracionais. No entanto, quando acabei o quinto ano, com sobressaltos académicos que não me sentia capaz de superar, tomei consciência dos meus limites. O bacharelato tinha sido até então um caminho empedrado de milagres, mas avisava-me o coração que no final do quinto me esperava uma muralha intransponível. A verdade sem adornos era que me faltava já a vontade, a vocação, a ordem, o dinheiro e a ortografia para embarcar numa carreira académica. Melhor dizendo: os anos voavam e não fazia a mínima ideia do que ia fazer da minha vida,
A matéria não cura o homem, assim como o pecado não tem força para salvar o homem.
Não convém subtilizar em matéria de gratidão, porque esta se evapora quando a subtilizamos.
Verdade e Mentira
Sei que há imensas coisas na história de uma família que são pura fantasia. Qualquer família. as histórias vão passando de geração em geração e a verdade vai-se perdendo. Quem conta um conto acrescenta um ponto, como se costuma dizer. Alguns talvez achem que isto significa que a verdade não consegue competir com a mentira. Mas eu cá não acredito nisso. Cá para mim, depois de todas as mentiras terem sido contadas e esquecidas, a verdade perdura ainda. Não anda a fugir de um lado para o outro e não muda com o passar do tempo. É impossível corrompê-la, assim como é impossível salgar o sal. É impossível corrompê-la porque é pura, sem adornos. É a matéria de que são feitas as nossas palavras. Já ouvi compará-la à rocha – talvez a bíblia – e não discordo dessa ideia. Mas a verdade permanecerá, mesmo quando a rocha tiver desaparecido. Tenho a certeza que certas pessoas discordam isto. Bastantes, aliás. Mas nunca cheguei a perceber em que é que nenhuma delas acredita.
Fala-se muito contra o analfabetismo e ele é porventura um grande mal; mas não se repara em que há outros analfabetismos ainda mais graves: o de um especialista de determinada matéria que nada conhece do que os outros estudam ou o dos que vão morrer inconscientes do espectáculo em que Deus os jogou.
Na verdade, não existe outro ‘eu’ além do ‘Eu eterno’, infinitamente belo, sublime e perfeito. O ‘eu’ que se apega à matéria e sofre é o ‘falso eu’. Mas isso não significa que o ‘falso eu’ seja uma existência real. Dizer que o ‘falso eu’ está manifestado, significa que o ‘Eu verdadeiro’ se encontra ausente.
A alma move toda a matéria do mundo.
Uma paixão tão completamente centrada em si recusa o resto do mundo tal como a água límpida e calma filtra todas as matérias estranhas.