Sonetos de Olavo Bilac

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Sonetos de Olavo Bilac. Conheça este e outros autores famosos em Poetris.

XIX

Sai a passeio, mal o dia nasce,
Bela, nas simples roupas vaporosas;
E mostra Ă s rosas do jardim as rosas
Frescas e puras que possui na face.

Passa. E todo o jardim, por que ela passe,
Atavia-se. Há falas misteriosas
Pelas moitas, saudando-a respeitosas…
É como se uma sílfide passasse!

E a luz cerca-a, beijando-a. O vento Ă© um choro
Curvam-se as flores trĂŞmulas … O bando
Das aves todas vem saudá-la em coro …

E ela vai, dando ao sol o rosto brendo.
Ă€s aves dando o olhar, ao vento o louro
Cabelo, e Ă s flores os sorrisos dando…

O IncĂŞndio De Roma

Raiva o incĂŞndio. A ruir, soltas, desconjuntadas,
As muralhas de pedra, o espaço adormecido
De eco em eco acordando ao medonho estampido,
Como a um sopro fatal, rolam esfaceladas.

E os templos, os museus, o CapitĂłlio erguido
Em mármor frígio, o Foro, as erectas arcadas
Dos aquedutos, tudo as garras inflamadas
Do incĂŞndio cingem, tudo esbroa-se partido.

Longe, reverberando o clarĂŁo purpurino,
Arde em chamas o Tibre e acende-se o horizonte.
Impassível, porém, no alto do Palatino,

Nero, com o manto grego ondeando ao ombro, assoma
Entre os libertos, e Ă©brio, engrinaldada a fronte,
Lira em punho, celebra a destruição de Roma.

Beethoven Surdo

Surdo, na universal indiferença, um dia,
Beethoven, levantando um desvairado apelo,
Sentiu a terra e o mar num mudo pesadelo.
E o seu mundo interior cantava e restrugia.

Torvo o gesto, perdido o olhar, hirto o cabelo,
Viu, sobre a orquestração que no seu crânio havia,
Os astros em torpor na imensidade fria,
O ar e os ventos sem voz, a natureza em gelo.

Era o nada, a eversĂŁo do caos no cataclismo,
A síncope do som no páramo profundo,
O silêncio, a algidez, o vácuo, o horror no abismo.

E Beethoven, no seu supremo desconforto,
Velho e pobre, caiu, como um deus moribundo,
Lançando a maldição sobre o universo morto!

XVII

Por estas noites frias e brumosas
É que melhor se pode amar, querida!
Nem uma estrela pálida, perdida
Entre a névoa, abre as pálpebras medrosas

Mas um perfume cálido de rosas
Corre a face da terra adormecida …
E a névoa cresce, e, em grupos repartida,
Enche os ares de sombras vaporosas:

Sombras errantes, corpos nus, ardentes
Carnes lascivas … um rumor vibrante
De atritos longos e de beijos quentes …

E os céus se estendem, palpitando, cheios
Da tépida brancura fulgurante
De um turbilhão de braços e de seios.

Vanitas

Cego, em febre a cabeça, a mão nervosa e fria,
Trabalha. A alma lhe sai da pena, alucinada,
E enche-lhe, a palpitar, a estrofe iluminada
De gritos de triunfo e gritos de agonia.

Prende a idéia fugaz; doma a rima bravia,
Trabalha… E a obra, por fim, resplandece acabada:
“Mundo, que as minhas mĂŁos arrancaram do nada!
Filha do meu trabalho! ergue-te Ă  luz do dia!

Cheia da minha febre e da minha alma cheia,
Arranquei-te da vida ao ádito profundo,
Arranquei-te do amor Ă  mina ampla e secreta!

Posso agora morrer, porque vives!” E o Poeta
Pensa que vai cair, exausto, ao pé de um mundo,
E cai – vaidade humana! – ao pĂ© de um grĂŁo de areia…

XV

Inda hoje, o livro do passado abrindo,
Lembro-as e punge-me a lembrança delas;
Lembro-as, e vejo-as, como as vi partindo,
Estas cantando, soluçando aquelas.

Umas, de meigo olhar piedoso e lindo,
Sob as rosas de neve das capelas;
Outras, de lábios de coral, sorrindo,
Desnudo o seio, lĂşbricas e belas…

Todas, formosas como tu, chegaram,
Partiram… e, ao partir, dentro em meu seio
Todo o veneno da paixĂŁo deixaram.

Mas, ah! nenhuma teve o teu encanto,
Nem teve olhar como esse olhar, tĂŁo cheio
De luz tĂŁo viva, que abrasasse tanto.

Penetrália

Falei tanto de amor!… de galanteio,
Vaidade e brinco, passatempo e graça,
Ou desejo fugaz, que brilha e passa
No relâmpago breve com que veio…

O verdadeiro amor, honra e desgraça,
Gozo ou suplĂ­cio, no Ă­ntimo fechei-o:
Nunca o entreguei ao pĂşblico recreio,
Nunca o expus indiscreto ao sol da praça.

NĂŁo proclamei os nomes, que baixinho,
Rezava… E ainda hoje, tĂ­mido, mergulho
Em funda sombra o meu melhor carinho.

Quando amo, amo e deliro sem barulho;
E quando sofro, calo-me, e definho
Na ventura infeliz do meu orgulho.

I

Talvez sonhasse, quando a vi. Mas via
Que, aos raios do luar iluminada
Entre as estrelas trĂŞmulas subia
Uma infinita e cintilante escada.

E eu olhava-a de baixo, olhava-a… Em cada
Degrau, que o ouro mais lĂ­mpido vestia,
Mudo e sereno, um anjo a harpa doirada,
Ressoante de sĂşplicas, feria…

Tu, mãe sagrada! vós também, formosas
Ilusões! sonhos meus! íeis por ela
Como um bando de sombras vaporosas.

E, Ăł meu amor! eu te buscava, quando
Vi que no alto surgias, calma e bela,
O olhar celeste para o meu baixando…

Vita Nuova

Se ao mesmo gozo antigo me convidas,
Com esses mesmos olhos abrasados,
Mata a recordação das horas idas,
Das horas que vivemos apartados!

Não me fales das lágrimas perdidas,
NĂŁo me fales dos beijos dissipados!
Há numa vida humana cem mil vidas,
Cabem num coração cem mil pecados!

Amo-te! A febre, que supunhas morta,
Revive. Esquece o meu passado, louca!
Que importa a vida que passou? que importa,

Se inda te amo, depois de amores tantos,
E inda tenho, nos olhos e na boca,
Novas fontes de beijos e de prantos?!

A Voz do Amor

Nessa pupila rĂştila e molhada,
RefĂşgio arcano e sacro da Ternura,
A ampla noite do gozo e da loucura
Se desenrola, quente e embalsamada.

E quando a ansiosa vista desvairada
Embebo Ă s vezes nessa noite escura,
Dela rompe uma voz, que, entrecortada
De soluços e cânticos, murmura…

É a voz do Amor, que, em teu olhar falando,
Num concerto de sĂşplicas e gritos
Conta a histĂłria de todos os amores;

E vĂŞm por ela, rindo e blasfemando,
Almas serenas, corações aflitos,
Tempestades de lágrimas e flores…

Inania Verba

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca nĂŁo diz, o que a mĂŁo nĂŁo escreve?
– Ardes, sangras, pregada a’ tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava…

O Pensamento ferve, e Ă© um turbilhĂŁo de lava:
A Forma, fria e espessa, Ă© um sepulcro de neve…
E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
Que, perfume e dano, refulgia e voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?

E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?!

XII

Sonhei que me esperavas. E, sonhando,
SaĂ­, ansioso por te ver: corria…
E tudo, ao ver-me tĂŁo depressa andando,
Soube logo o lugar para onde eu ia.

E tudo me falou, tudo! Escutando
Meus passos, através da ramaria,
Dos despertados pássaros o bando:
“Vai mais depressa! ParabĂ©ns!” dizia.

Disse o luar: “Espera! que eu te sigo:
Quero tambĂ©m beijar as faces dela!”
E disse o aroma: “Vai, que eu vou contigo!”

E cheguei. E, ao chegar, disse uma estrela:
“Como Ă©s feliz! como Ă©s feliz, amigo,
Que de tĂŁo perto vais ouvi-la e vĂŞ-la!”

No Meio Do Caminho

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha…

E paramos de sĂşbito na estrada
Da vida: longos anos, presa Ă  minha
A tua mĂŁo, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo… Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

XXXII

Como quisesse livre ser, deixando
As paragens natais, espaço em fora,
A ave, ao bafejo tépido da aurora,
Abriu as asas e partiu cantando.

Estranhos climas, longes céus, cortando
Nuvens e nuvens, percorreu: e, agora
Que morre o sol, suspende o vĂ´o, e chora,
E chora, a vida antiga recordando …

E logo, o olhar volvendo compungido
Atrás, volta saudosa do carinho,
Do calor da primeira habitação…

Assim por largo tempo andei perdido:
– Ali! que alegria ver de novo o ninho,
Ver-te, e beijar-te a pequenina mĂŁo!

As Ondas

Entre as trĂŞmulas mornas ardentias,
A noite no alto-mar anima as ondas.
Sobem das fundas Ăşmidas Golcondas,
PĂ©rolas vivas, as nereidas frias:

Entrelaçam-se, correm fugidias,
Voltam, cruzando-se; e, em lascivas rondas,
Vestem as formas alvas e redondas
De algas roxas e glaucas pedrarias.

Coxas de vago Ă´nix, ventres polidos
De alabastro, quadris de argĂŞntea espuma,
Seios de dĂşbia opala ardem na treva;

E bocas verdes, cheias de gemidos,
Que o fósforo incendeia e o âmbar perfuma,
Soluçam beijos vĂŁos que o vento leva…

Desterro

Já me não amas? Basta! Irei, triste, e exilado
Do meu primeiro amor para outro amor, sozinho.
Adeus, carne cheirosa! Adeus, primeiro ninho
Do meu delĂ­rio! Adeus, belo corpo adorado!

Em ti, como num vale, adormeci deitado,
No meu sonho de amor, em meĂŁo do caminho…
Beijo-te inda uma vez, num Ăşltimo carinho,
Como quem vai sair da pátria desterrado…

Adeus, corpo gentil, pátria do meu desejo!
Berço em que se emplumou o meu primeiro idílio,
Terra em que floresceu o meu primeiro beijo!

Adeus! Esse outro amor há de amargar-me tanto
Como o pĂŁo que se come entre estranhos, no exĂ­lio,
Amassado com fel e embebido de pranto…

XXIX

Por tanto tempo, desvairado e aflito,
Fitei naquela noite o firmamento,
Que inda hoje mesmo, quando acaso o fito,
Tudo aquilo me vem ao pensamento.

Sal, no peito o derradeiro grito
Calcando a custo, sem chorar, violento…
E o céu fulgia plácido e infinito,
E havia um choro no rumor do vento…

Piedoso céu, que a minha dor sentiste!
A áurea esfera da lua o ocaso entrava.
Rompendo as leves nuvens transparentes;

E sobre mim, silenciosa e triste,
A via-láctea se desenrolava
Como um jorro de lágrimas ardentes.

XXVIII

Pinta-me a curva destes cĂ©us … Agora,
Erecta, ao fundo, a cordilheira apruma:
Pinta as nuvens de fogo de uma em uma,
E alto, entre as nuvens, o raiar da aurora.

Solta, ondulando, os véus de espessa bruma,
E o vale pinta, e, pelo vale em fora,
A correnteza tĂşrbida e sonora
Do ParaĂ­ba, em torvelins de espuma.

Pinta; mas vĂŞ de que maneira pintas …
Antes busques as cores da tristeza,
Poupando o escrĂ­nio das alegres tintas:

– Tristeza sir-gular, estranha mágoa
De que vejo coberta a natureza,
Porque a vejo com os olhos rasos d’água …

XXII

A Goethe.

Quando te leio, as cenas animadas
Por teu gĂŞnio, as paisagens que imaginas,
Cheias de vida, avultam repentinas,
Claramente aos meus olhos desdobradas.

Vejo o céu, vejo as serras coroadas
De gelo, e o sol que o manto das neblinas
Rompe, aquecendo as frĂ­gidas campinas
E iluminando os vales e as estradas.

Ouço o rumor soturno da charrúa,
E os rouxinĂłis que, no carvalho erguido,
A voz modulam de ternuras cheia.

E vejo, Ă  luz tristĂ­ssima da lua,
Hermann que cisma, pálido, embebido
No meigo olhar da loura DorothĂ©a…

A Gonçalves Dias

Celebraste o domĂ­nio soberano
Das grandes tribos, o tropel fremente
Da guerra bruta, o entrechocar insano
Dos tacapes vibrados rijamente,

O maracá e as flechas, o estridente
Troar da inĂşbia, e o canitar indiano…
E, eternizando o povo americano,
Vives eterno em teu poema ingente.

Estes revoltos, largos rios, estas
Zonas fecundas, estas seculares
Verdejantes e amplĂ­ssimas florestas

Guardam teu nome: e a lira que pulsaste
Inda se escuta, a derramar nos ares
O estridor das batalhas que contaste.