Desobriga
Os meus peccados, Anjo! os meus peccados!
Contar-t’os? Para que, se nĂŁo tĂȘm fim…
Sou santo ao pé dos outros desgraçados,
Mas tu és mais que santa ao pé de mim!A ti accendo cyrios perfumados,
Faço novenas, queimo-te alecrim,
Quando soffro, me vejo com cuidados…
Nas tuas rezas, lembra-te de mim!Que eu seja puro d’alma e pensamento!
E que, em dia do grande julgamento,
Minhas culpas não sejam de maior:Pois tenho, que o céu tudo aponta e marca,
Um processo a correr n’essa comarca,
Cujo delegado Ă© Nosso Senhor…
Sonetos sobre Anjos
50 resultadosAbandonada
Ao meu irmĂŁo Odilon dos Anjos
Bem depressa sumiu-se a vaporosa
Nuvem de amores, de ilusÔes tão bela;
O brilho se apagou daquela estrela
Que a vida lhe tornava venturosa!Sombras que passam, sombras cor-de-rosa
– Todas se foram num festivo bando,
Fugazes sonhos, gĂĄrrulos voando
– Resta somente um’alma tristurosa!Coitada! o gozo lhe fugiu correndo,
Hoje ela habita a erma soledade,
Em que vive e em que aos poucos vai morrendo!Seu rosto triste, seu olhar magoado,
Fazem lembrar em noute de saudade
A luz mortiça d’um olhar nublado.
AtĂ© que um Dia…
Meus versos eram rosas, lĂrios, heras,
borboletas, regatos, cotovias
cantando suas doces melodias,
anjos, sereias, ninfas e quimeras.Meus versos eram pombas entre as feras
e, na festa das horas e dos dias,
ia dançando penas e alegrias
e o ano tinha quatro primaveras.E a festa continua… Ă© tambĂ©m festa
o cardo e a urze, o tojo, a murta, a giesta,
a chuva no beiral, o vento Norte,o gosto a mar, a lĂĄgrimas, a sal,
até que um dia a vida, a bem ou mal,
exausta de cantar me empreste Ă morte.
Dualidade
Sei que Ă© Amor, meu amor…porque o desejo
o meu prĂłprio desejo tĂŁo violento,
dir-se-ia ter pudor, ter sentimento,
quando estĂĄs junto a mim, quando te vejo.Ă um clarim a vibrar como um harpejo,
misto de impulso e de deslumbramento.
Sei que Ă© Amor, meu amor…porque o desejo
Ă© desejo e ternura a um sĂł momento.Beijo-te a boca, as mĂŁos, e hei de beijar-te
nessa dupla emoção, (violento e terno)
em que a minha alma inteira se reparte,– e a perceber em meu estranho ardor,
que hĂĄ uma luta entre o efĂȘmero e o eterno,
entre um demĂŽnio e um anjo em todo Amor!
Horas De Sombra
Horas de sombra, de silĂȘncio amigo
Quando hĂĄ em tudo o encanto da humildade
E que o anjo branco e belo da saudade
Roga por nĂłs o seu perfil antigo.Horas que o coração nĂŁo vĂȘ perigo
De gozar, de sentir com liberdade…
Horas da asa imortal da Eternidade
Aberta sobre tumular jazigo.Horas da compaixĂŁo e da clemĂȘncia,
Dos segredos sagrados da existĂȘncia,
De sombras de perdão sempre benditas.Horas fecundas, de mistério casto,
Quando dos céus desce, profundo e vasto,
O repouso das almas infinitas.
A Minha AvĂł
Minh’alma vai cantar, alma sagrada!
Raio de sol dos meus primeiros dias…
Gota de luz nas regiÔes sombrias
De minha vida triste e amargurada.Minh’alma vai cantar, velhinha amada!
Rio onde correm minhas alegrias…
Anjo bendito que me refugias
Nas tuas asas contra a sina irada!Minh’alma vai cantar… Transforma o seio
N’um cofre santo de carĂcias cheio,
Para este livro todo o meu tesouro… –Eu quero vĂȘ-lo, em desejada calma,
No rico santuĂĄrio de tu’alma…
– HĂłstia guardada n’um cibĂłrio de ouro! –
Violinos
Pelas bizarras, gĂłticas janelas
De um tempo medieval o sol ondula:
Nunca os vitrais viram visÔes mais belas
Quando, no ocaso, o sol os doura e oscula…Doces, multicores aquarelas
Sobre um saudoso cĂ©u que alĂ©m se azula…
Calma, serena, divinal, entre eras,
A pomba ideal dos Ăngelus arrula…Rezam de joelhos anjos de mĂŁos postas
Através dos vitrais, e nas encostas
Dos montes sobe a claridade ondeando…Ă a lua de Deus, que as curves meigas
Foi ondular pelos vergéis e veigas
MagnĂłlias e lĂrios desfolhando…
O Coração
O coração é a sagrada pira
Onde o mistério do sentir flameja.
A vida da emoção ele a deseja
como a harmonia as cordas de uma lira.Um anjo meigo e cĂąndido suspira
No coração e o purifica e beija…
E o que ele, o coração, aspira, almeja
à o sonho que de lågrimas delira.à sempre sonho e também é piedade,
Doçura, compaizão e suavidade
E graça e bem, misericórdia pura.Uma harmonia que dos anjos desce,
Que como estrela e flor e som floresce
Maravilhando toda criatura!
Soneto
Fecham-se os dedos donde corre a esperança,
Toldam-se os olhos donde corre a vida.
PorquĂȘ esperar, porquĂȘ, se nĂŁo se alcança
Mais do que a angĂșstia que nos Ă© devida?Antes aproveitar a nossa herança
De intençÔes e palavras proibidas.
Antes rirmos do anjo, cuja lança
Nos expulsa da terra prometida.Antes sofrer a raiva e o sarcasmo,
Antes o olhar que peca, a mĂŁo que rouba,
O gesto que estrangula, a voz que grita.Antes viver do que morrer no pasmo
Do nada que nos surge e nos devora,
Do monstro que inventĂĄmos e nos fita.
Dona Flor
Ela Ă© tĂŁo meiga! Em seu olhar medroso
Vago como os crepĂșsculos do estio,
Treme a ternura, como sobre um rio
Treme a sombra de um bosque silencioso.Quando, nas alvoradas da alegria,
A sua boca Ășmida floresce,
Naquele rosto angelical parece
Que Ă© primavera, e que amanhece o dia.Um rosto de anjo, lĂmpido, radiante…
Mas, ai! sob ĂȘsse angĂ©lico semblante
Mora e se esconde uma alma de mulherQue a rir-se esfolha os sonhos de que vivo
– Como atirando ao vento fugitivo
As folhas sem valor de um malmequer…
IV
Vagueiam suavemente os teus olhares
Pelo amplo céu franjado em linho:
Comprazem-te as visĂ”es crepusculares…
Tu és uma ave que perdeu o ninho.Em que nichos doirados, em que altares
Repoisas, anjo errante, de mansinho?
E penso, ao ver-te envolta em véus de luares,
Que vĂȘs no azul o teu caixĂŁo de pinho.Ăs a essĂȘncia de tudo quanto desce
Do solar das celestes maravilhas…
– Harpa dos crentes, cĂtola da prece…Lua eterna que nĂŁo tivesse fases,
Cintilas branca, imaculada brilhas,
E poeiras de astros nas sandĂĄlias trazes…
Visita
Adornou o meu quarto a flor do cardo,
Perfumei-o de almiscar recendente;
Vesti-me com a purpura fulgente,
Ensaiando meus cantos, como um bardo;Ungi as mĂŁos e a face com o nardo
Crescido nos jardins do Oriente,
A receber com pompa, dignamente,
Mysteriosa visita a quem aguardo.Mas que filha de reis, que anjo ou que fada
Era essa que assim a mim descia,
Do meu casebre ĂĄ humida pousada?…Nem princezas, nem fadas. Era, flor,
Era a tua lembrança que batia
Ăs portas de ouro e luz do meu amor!
Inferno
HĂĄ no centro da Terra ampla caverna,
Reino imenso dos anjos rebelados,
Lago horrendo de enxofres inflamados,
Que acende o sopro da Vingança eterna.O seu fogo maldito é sem lucerna,
Que faz trevas dos fumos condensados.
Seus tectos e alçapÔes, enfarruscados,
NĂŁo deixam lĂĄ entrar a luz externa.Silvosos gritos, hĂłrridos lamentos,
BlasfĂ©mias, maldiçÔes, desata o vĂcio
Bramando, sem cessar, em seus tormentos.Que imensos rĂ©us no eterno precipĂcio
Caindo estĂŁo, a todos os momentos!
O Inferno sem fim, fatal suplĂcio.
PĂĄlida, Ă Luz Da LĂąmpada Sombria
PĂĄlida, Ă luz da lĂąmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!Era a virgem do mar! na escuma fria
Pela maré das åguas embalada!
Era um anjo entre nuvens d’alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!Era mais bela! o seio palpitando…
Negros olhos as pĂĄlpebras abrindo…
Formas nuas no leito resvalando…NĂŁo te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti – as noites eu velei chorando,
Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo!
Acordando
Em sonho, Ă s vezes, se o sonhar quebranta
Este meu vĂŁo sofrer; esta agonia,
Como sobe cantando a cotovia,
Para o cĂ©u a minh’alma sobe e canta.Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,
Que ao mundo traz piedosa mais um dia…
Canta o enlevo das cousas, a alegria
Que as penetra de amor e as alevanta…Mas, de repente, um vento humido e frio
Sopra sobre o meu sonho: um calafrio
Me acorda. â A noite Ă© negra e muda: a dorCĂĄ vela, como d’antes, ao meu lado…
Os meus cantos de luz, anjo adorado,
SĂŁo sonho sĂł, e sonho o meu amor!
Esterilidade
Ao vĂȘ-la caminhar em trajos vaporosos,
Parece que desliza em voluptuosa dança,
Como aqueles rĂ©pteis da Ăndia, majestosos,
Que um faquir faz mover em torno d’uma lança.Como um vasto areal, ou como um cĂ©u ardente,
Como as vagas do mar em seu fragor insano,
â Assim ela caminha, a passo, indiferente,
InsensĂvel Ă dor, ao sofrimento humano.Seus olhos tĂȘem a luz dos cristais rebrilhantes,
E o seu todo estranho onde, a par, se lobriga
O anjo inviolado e a muda esfinge antiga,Onde tudo Ă© fulgor, ouro, metais, diamantes
VĂȘ-se resplandecer a fria majestade
Da mulher infecunda â essa inutilidade!Tradução de Delfim GuimarĂŁes
Ah! Os RelĂłgios
Amigos, nĂŁo consultem os relĂłgios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fĂșteis problemas tĂŁo perdidas
que atĂ© parecem mais uns necrolĂłgios…Porque o tempo Ă© uma invenção da morte:
nĂŁo o conhece a vida – a verdadeira –
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma Ă© dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguĂ©m – ao voltar a si da vida –
acaso lhes indaga que horas sĂŁo…
Se Eu Fosse Um Padre
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermÔes,
nĂŁo falaria em Deus nem no Pecado
– muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduçÔes,não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terrĂveis maldiçÔes…
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infĂąncia me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!Porque a poesia purifica a alma
… a um belo poema – ainda que de Deus se aparte –
um belo poema sempre leva a Deus!
A Perfeição
A Perfeição Ă© a celeste ciĂȘncia
Da cristalização de almos encantos,
De abandonar os mĂłrbidos quebrantos
E viver de uma oculta florescĂȘncia.Noss’alma fica da clarividĂȘncia
Dos astros e dos anjos e dos santos,
Fica lavada na lustral dos prantos,
Ă dos prantos divina e pura essĂȘncia.Noss’alma fica como o ser que Ă s lutas
As mĂŁos conserva limpas, impolutas,
Sem as manchas do sangue mau da guerra.A Perfeição é a alma estar sonhando
Em soluços, soluços, soluçando
As agonias que encontrou na Terra.!
O Amor E A Morte
(com tema de Augusto dos Anjos)
Sobre essa estrada ilumineira e parda
dorme o Lajedo ao sol, como uma Cobra.
Tua nudez na minha se desdobra
â Ăł Corça branca, Ăł ruiva Leoparda.O Anjo sopra a corneta e se retarda:
seu Cinzel corta a pedra e o Porco sobra.
Ao toque do Divino, o bronze dobra,
enquanto assolo os peitos da javarda.VĂȘ: um dia, a bigorna desses Paços
cortarå, no martelo de seus aços,
e o sangue, hĂŁo de abrasĂĄ-lo os inimigos.E a Morte, em trajos pretos e amarelos,
brandirĂĄ, contra nĂłs, doidos Cutelos
e as Asas rubras dos DragÔes antigos.