Sonetos sobre Pés de Antero de Quental

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Sonetos de pés de Antero de Quental. Leia este e outros sonetos de Antero de Quental em Poetris.

Sonho Oriental

Sonho-me Ă s vezes rei, n’alguma ilha,
Muito longe, nos mares do Oriente,
Onde a noite Ă© balsĂąmica e fulgente
E a lua cheia sobre as ĂĄguas brilha…

O aroma da magnĂłlia e da baunilha
Paira no ar diĂĄfano e dormente…
Lambe a orla dos bosques, vagamente,
O mar com finas ondas de escumilha…

E enquanto eu na varanda de marfim
Me encosto, absorto n’um cismar sem fim,
Tu, meu amor, divagas ao luar,

Do profundo jardim pelas clareiras,
Ou descanças debaixo das palmeiras,
Tendo aos pés um leão familiar.

Anima Mea

Estava a Morte ali, em pé, diante,
Sim, diante de mim, como serpente
Que dormisse na estrada e de repente
Se erguesse sob os pés do caminhante.

Era de ver a fĂșnebre bachante!
Que torvo olhar! que gesto de demente!
E eu disse-lhe: «Que buscas, impudente,
Loba faminta, pelo mundo errante?»

— Não temas, respondeu (e uma ironia
Sinistramente estranha, atroz e calma,
Lhe torceu cruelmente a boca fria).

Eu nĂŁo busco o teu corpo… Era um trofĂ©u
Glorioso de mais… Busco a tua alma —
Respondi-lhe: «A minha alma jå morreu!»

Abnegação

Chovam lĂ­rios e rosas no teu colo!
Chovam hinos de glĂłria na tua alma!
Hinos de glória e adoração e calma,
Meu amor, minha pomba e meu consolo!

DĂȘ-te estrelas o cĂ©u, flores o solo,
Cantos e aroma o ar e sombra a palmar.
E quando surge a lua e o mar se acalma,
Sonhos sem fim seu preguiçoso rolo!

E nem sequer te lembres de que eu choro…
Esquece atĂ©, esquece, que te adoro…
E ao passares por mim, sem que me olhes,

Possam das minhas lågrimas cruéis
Nascer sob os teus pés flores fiéis,
Que pises distraĂ­da ou rindo esfolhes!

Tormanto do Ideal

Conheci a Beleza que nĂŁo morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vĂȘ tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cĂŽr, bem como a nuvem que erra
Ao pĂŽr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo Ă  fĂłrma, em vĂŁo, a idea pura,
Tropéço, em sombras, na materia dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o baptismo dos poetas,
E assentado entre as fĂłrmas incompletas
Para sempre fiquei palido e triste.

Elogio da Morte

I

Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e acordo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me påra o coração robusto.

NĂŁo que de larvas me povĂŽe a mente
Esse vĂĄcuo nocturno, mudo e augusto,
Ou forceje a razĂŁo por que afugente
Algum remorso, com que encara a custo…

Nem fantasmas nocturnos visionĂĄrios,
Nem desfilar de espectros mortuĂĄrios,
Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte…

Nada! o fundo dum poço, hĂșmido e morno,
Um muro de silĂȘncio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcrais da Morte.

II

Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento.
Nas regiÔes do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a fantasia.

Atravesso, no escuro, a névoa fria
D’um mundo estranho, que povĂŽa o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
Só das visÔes da noite se confia.

Que mĂ­sticos desejos me enlouquecem?
Do Nirvana os abismos aparecem,
A meus olhos, na muda imensidade!

N’esta viagem pelo ermo espaço,

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Evolução

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incĂłgnita floresta…
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquĂ­ssimo inimigo…

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
O, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paĂșl, glauco pascigo…

Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade…

Interrogo o infinito e Ă s vezes choro…
Mas estendendo as mĂŁos no vĂĄcuo, adoro
E aspiro unicamente Ă  liberdade.

Solemnia Verba

Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vĂŁos andĂĄmos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos…

PĂł e cinzas, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz a Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do pensar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver nĂŁo foi em vĂŁo, se isto Ă© vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.

Logos

Tu, que eu não vejo, e estås ao pé de mim
E, o que Ă© mais, dentro de mim — que me rodeias
Com um nimbo de afectos e de idéias,
Que sĂŁo o meu princĂ­pio, meio e fim…

Que estranho ser és tu (se és ser) que assim
Me arrebatas contigo e me passeias
Em regiÔes inominadas, cheias
De encanto e de pavor… de nĂŁo e sim…

És um reflexo apenas da minha alma,
E em vez de te encarar com fronte calma,
Sobressalto-me ao ver-te, e tremo e exoro-te…

Falo-te, calas… calo, e vens atento…
És um pai, um irmĂŁo, e Ă© um tormento
Ter-te a meu lado… Ă©s um tirano, e adoro-te!

Com Os Mortos

Os que amei, onde estĂŁo? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufÔes,
Levados, como em sonho, entre visÔes,
Na fuga, no ruir dos universos…

E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e Ă  mercĂȘ dos turbilhĂ”es,
Só vejo espuma lívida, em cachÔes,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos…

Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhĂŁo ideal do eterno Bem.

A uma Mulher

Para tristezas, para dor nasceste.
Podia a sorte pÎr-te o berço estreito
N’algum palĂĄcio e ao pĂ© de rĂ©gio leito,
Em vez d’este areal onde cresceste:

Podia abrir-te as flores — com que veste
As ricas e as felizes — n’esse peito:
Fazer-te… o que a Fortuna hĂĄ sempre feito…
Terias sempre a sorte que tiveste!

Tinhas de ser assim… Teus olhos fitos,
Que nĂŁo sĂŁo d’este mundo e onde eu leio
Uns mistérios tão tristes e infinitos,

Tua voz rara e esse ar vago e esquecido,
Tudo me diz a mim, e assim o creio,
Que para isto sĂł tinhas nascido!