Amor Vivo
Amar! mas d’um amor que tenha vida…
Não sejam sempre tímidos harpejos,
Não sejam só delirios e desejos
D’uma douda cabeça escandecida…Amor que vive e brilhe! luz fundida
Que penetre o meu ser — e não só beijos
Dados no ar — delírios e desejos —
Mas amor… dos amores que têm vida…Sim, vivo e quente! e já a luz do dia
Não virá dissipa-lo nos meus braços
Como névoa da vaga fantasia…Nem murchará do sol á chama erguida…
Pois que podem os astros dos espaços
Contra débeis amores… se têm vida?
Sonetos sobre Sempre de Antero de Quental
14 resultadosA um Crucifixo
Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste… ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
Arrojaras de novo à campa os membros lassos…Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário…E agora, como então, viras o mundo exangue,
E ouviras perguntar — de que serviu o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —
Amaritudo
Só por ti, astro ainda e sempre oculto,
Sombra do Amor e sonho da Verdade,
Divago eu pelo mundo e em ansiedade
Meu próprio coração em mim sepulto.De templo em templo, em vão, levo o meu culto,
Levo as flores d’uma íntima piedade.
Vejo os votos da minha mocidade
Receberem somente escárnio e insulto.À beira do caminho me assentei…
Escutarei passar o agreste vento,
Exclamando: assim passe quando amei! —Oh minh’alma, que creste na virtude!
O que será velhice e desalento,
Se isto se chama aurora e juventude?
Tormanto do Ideal
Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a côr, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.Pedindo à fórma, em vão, a idea pura,
Tropéço, em sombras, na materia dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.Recebi o baptismo dos poetas,
E assentado entre as fórmas incompletas
Para sempre fiquei palido e triste.
Elogio da Morte
I
Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e acordo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me pára o coração robusto.Não que de larvas me povôe a mente
Esse vácuo nocturno, mudo e augusto,
Ou forceje a razão por que afugente
Algum remorso, com que encara a custo…Nem fantasmas nocturnos visionários,
Nem desfilar de espectros mortuários,
Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte…Nada! o fundo dum poço, húmido e morno,
Um muro de silêncio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcrais da Morte.II
Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento.
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a fantasia.Atravesso, no escuro, a névoa fria
D’um mundo estranho, que povôa o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
Só das visões da noite se confia.Que místicos desejos me enlouquecem?
Do Nirvana os abismos aparecem,
A meus olhos, na muda imensidade!N’esta viagem pelo ermo espaço,
Aspiração
Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor, e até parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece…
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gosos.Minh’alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira…Porém do presentir dá-me a certeza.
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!
Espectros
Espectros que velais, enquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados
Sobre os meus sonos curtos e cansados
Me encheis as noites de agonia e susto!…De que me vale a mim ser puro e justo,
E entre combates sempre renovados
Disputar dia a dia à mão dos Fados
Uma parcela do saber augusto,Se a minh’alma há-de ver, sobre si fitos,
Sempre esses olhos trágicos, malditos!
Se até dormindo, com angústia imensa,Bem os sinto verter sobre o meu leito,
Uma a uma verter sobre o meu peito
As lágrimas geladas da descrença!
Diálogo
A cruz dizia à terra onde assentava,
Ao vale obscuro, ao monte áspero e mudo:
— Que és tu, abismo e jaula, aonde tudo
Vive na dor e em luta cega e brava?Sempre em trabalho, condenada escrava.
Que fazes tu de grande e bom, contudo?
Resignada, és só lodo informe e rudo;
Revoltosa, és só fogo e horrida lava…Mas a mim não há alta e livre serra
Que me possa igualar!.. amor, firmeza,
Sou eu só: sou a paz, tu és a guerra!Sou o espírito, a luz!.. tu és tristeza,
Oh lodo escuro e vil! — Porém a terra
Respondeu: Cruz, eu sou a Natureza!
Sempre o Futuro, Sempre! e o Presente
Sempre o futuro, sempre! e o presente
Nunca! Que seja esta hora em que se existe
De incerteza e de dor sempre a mais triste,
E só farte o desejo um bem ausente!Ai! que importa o futuro, se inclemente
Essa hora, em que a esperança nos consiste,
Chega… é presente… e só á dor assiste?…
Assim, qual é a esperança que não mente?Desventura ou delirio?… O que procuro,
Se me foge, é miragem enganosa,
Se me espera, peor, espectro impuro…Assim a vida passa vagarosa:
O presente, a aspirar sempre ao futuro:
O futuro, uma sombra mentirosa.
Sonho
Sonhei – nem sempre o sonho é coisa vã –
Que um vento me levava arrebatado,
Através desse espaço constelado
Onde uma aurora eterna ri louçã…As estrelas, que guardam a manhã,
Ao verem-me passar triste e calado,
Olhavam-me e diziam com cuidado:
Onde está, pobre amigo, a nossa irmã?Mas eu baixava os olhos, receoso
Que traíssem as grandes mágoas minhas,
E passava furtivo e silencioso,Nem ousava contar-lhes, às estrelas,
Contar às tuas puras irmãzinhas
Quanto és falsa, meu bem, e indigna delas!
Lamento
Um diluvio de luz cae da montanha:
Eis o dia! eis o sol! o esposo amado!
Onde ha por toda a terra um só cuidado
Que não dissipe a luz que o mundo banha?Flor a custo medrada em erma penha,
Revolto mar ou golfo congelado,
Aonde ha ser de Deus tão olvidado
Para quem paz e alivio o céo não tenha?Deus é Pae! Pae de toda a creatura:
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado…Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
N’esta hora santa… e eu só posso ser triste…
Serei filho, mas filho abandonado!
A João De Deus
Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.O que há de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida;
Se procura, só acha… o desatino!Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degrêdo, o céu destino.
A uma Mulher
Para tristezas, para dor nasceste.
Podia a sorte pôr-te o berço estreito
N’algum palácio e ao pé de régio leito,
Em vez d’este areal onde cresceste:Podia abrir-te as flores — com que veste
As ricas e as felizes — n’esse peito:
Fazer-te… o que a Fortuna há sempre feito…
Terias sempre a sorte que tiveste!Tinhas de ser assim… Teus olhos fitos,
Que não são d’este mundo e onde eu leio
Uns mistérios tão tristes e infinitos,Tua voz rara e esse ar vago e esquecido,
Tudo me diz a mim, e assim o creio,
Que para isto só tinhas nascido!
A Germano Meireles
Só males são reais, só dor existe:
Prazeres só os gera a fantasia;
Em nada[, um] imaginar, o bem consiste,
Anda o mal em cada hora e instante e dia.Se buscamos o que é, o que devia
Por natureza ser não nos assiste;
Se fiamos num bem, que a mente cria,
Que outro remédio há [aí] senão ser triste?Oh! Quem tanto pudera que passasse
A vida em sonhos só. E nada vira…
Mas, no que se não vê, labor perdido!Quem fora tão ditoso que olvidasse…
Mas nem seu mal com ele então dormira,
Que sempre o mal pior é ter nascido!