Soneto Da Perdida Esperança
Perdi o bonde e a esperança
Volto pĂĄlido para casa.
A rua Ă© inĂștil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princĂpio do drama e da flora.NĂŁo sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
porque nĂŁo? na noite escassacom um insolĂșvel flautim.
Entretanto hĂĄ muito tempo
nĂłs gritamos: sim! ao eterno.
Sonetos sobre Tempo de Carlos Drummond de Andrade
6 resultadosRemissĂŁo
Tua memĂłria, pasto de poesia,
tua poesia, pasto dos vulgares,
vĂŁo se engastando numa coisa fria
a que tu chamas: vida, e seus pesares.Mas, pesares de quĂȘ? perguntaria,
se esse travo de angĂșstia nos cantares,
se o que dorme na base da elegia
vai correndo e secando pelos ares,e nada resta, mesmo, do que escreves
e te forçou ao exĂlio das palavras,
senĂŁo contentamento de escrever,enquanto o tempo, em suas formas breves
ou longas, que sutil interpretavas,
se evapora no fundo do teu ser?
A Vida Passada A Limpo
Ă esplĂȘndida lua, debruçada
sobre Joaquim Nabuco, 81.
Tu nĂŁo banhas apenas a fachada
e o quarto de dormir, prenda comum.Baixas a um vago em mim, onde nenhum
halo humano ou divino fez pousada,
e me penetras, lĂąmina de Ogum,
e sou uma lagoa iluminada.Tudo branco, no tempo. Que limpeza
nos resĂduos e vozes e na cor
que era sinistra, e agora, flor surpresa,jĂĄ nĂŁo destila mĂĄgoa nem furor:
fruto de aceitação da natureza,
essa alvura de morte lembra amor.
Legado
Que lembrança darei ao paĂs que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu nĂŁo me enganas, mundo, e nĂŁo te engano a ti.
Esses monstros atuais, nĂŁo os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.NĂŁo deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restarĂĄ, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.
Oficina Irritada
Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difĂcil de ler.Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, nĂŁo ser.Esse meu verbo antipĂĄtico e impuro
hĂĄ de pungir, hĂĄ de fazer sofrer,
tendĂŁo de VĂȘnus sob o pedicuro.NinguĂ©m o lembrarĂĄ: tiro no muro,
cĂŁo mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.
A Castidade com que Abria as Coxas
A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tĂŁo estrita, como se alargava.Ah, coito, coito, morte de tĂŁo vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substĂąncia esvaĂda,
eu não era ninguém e era mil seresem mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.Roupa e tempo jaziam pelo chĂŁo.
E nem restava mais o mundo, Ă beira
dessa moita orvalhada, nem destino.