Textos sobre Ar de José Luís Peixoto

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Textos de ar de José Luís Peixoto. Leia este e outros textos de José Luís Peixoto em Poetris.

As Pernas Pesadas

Hoje, temos as pernas pesadas com o nosso peso. Andamos a ver onde pomos os pés, a acautelarmo-nos para não cair, porque se partíssemos uma perna era a nossa morte. Sentimos uma tremura invisível nas pernas, e hoje avançou essa tremura para o dobro, e jå se nota ao olhar. Os ossos não se dobram da mesma maneira. Até o respirar é muito diferente do que jå foi. Dantes, era corrido, era uma coisa em que não reparåvamos. Hoje, é precisa mais força para sorver o ar e, quando o sopramos, soltamos um ruído de asma, como se tivéssemos o pescoço meio entupido ou tivéssemos engolido uma gaita enferrujada.

O Primeiro Beijo

Durante todas as noites desse verĂŁo, as estrelas foram lĂ­quidas no cĂ©u. Quando eu as olhava, eram pontos lĂ­quidos de brilho no cĂ©u. Na primeira vez, encontrĂĄmo-nos durante o dia: eu sorri-lhe, ela sorriu-me. Dissemos duas ou trĂȘs palavras e contivemo-nos dentro dos nossos corpos. Os olhos dela, por um instante, foram um abismo onde fiquei envolto por leveza luminosa, onde caĂ­a como se flutuasse: cair atravĂ©s do cĂ©u dentro de um sonho.

Naquela noite, fiquei a esperĂĄ-la, encostado ao muro, alguns metros depois da entrada da pensĂŁo. As pessoas que passavam eram alegres. Eu pensava em qualquer coisa que me fazia sentir maior por dentro, como a noite. As folhas de hera que cobriam o cimo do muro, e que se suspendiam sobre o passeio, eram uma Ășnica forma nocturna, feita apenas de sombras. Primeiro, senti as folhas de hera a serem remexidas; depois, vi os braços dela a agarrarem-se ao muro; depois, o rosto dela parado de encontro ao cĂ©u claro da noite. E faltou uma batida ao coração.

O mundo parou. Sombras pousavam-lhe, transparentes, na pele do rosto. O ar fresco, arrefecido, moldava-lhe a pele do rosto. E o mundo continuou. Ajudei-a a descer.

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Uma Casa Cheia de Livros

Os livros, esses animais sem pernas, mas com olhar, observam-nos mansos desde as prateleiras. NĂłs esquecemo-nos deles, habituamo-nos ao seu silĂȘncio, mas eles nĂŁo se esquecem de nĂłs, nĂŁo fazem uma pausa mĂ­nima na sua vigia, sentinelas atĂ© daquilo que nĂŁo se vĂȘ. Desde as estantes ou pousados sem ordem sobre a mesa, os livros conseguem distinguir o que somos sem qualquer expressĂŁo porque eles sabem, eles existem sobretudo nesse nĂ­vel transparente, nessa dimensĂŁo sussurrada. Os livros sabem mais do que nĂłs mas, sem defesa, estĂŁo Ă  nossa mercĂȘ. Podemos atirĂĄ-los Ă  parede, podemos atirĂĄ-los ao ar, folhas a restolhar, ar, ar, e vĂȘ-los cair, duros e sĂ©rios, no chĂŁo.

(…) Os livros, esses animais opacos por fora, essas donzelas. Os livros caem do cĂ©u, fazem grandes linhas rectas e, ao atingir o chĂŁo, explodem em silĂȘncio. Tudo neles Ă© absoluto, atĂ© as contradiçÔes em que tropeçam. E estĂŁo lĂĄ, aqui, a olhar-nos de todos os lados, a hipnotizar-nos por telepatia. Devemos-lhes tanto, atĂ© a loucura, atĂ© os pesadelos, atĂ© a esperança em todas as suas formas.

Ao Longo da Escrita deste Livro

No ano passado, em outubro, talvez a 27, sei que foi a uma terça-feira, a minha mĂŁe incentivou-me a dar um passeio. HĂĄ muito que desistiu de me dissuadir dos livros, tanto lĂȘs que treslĂȘs, mas mantĂ©m o hĂĄbito de, cuidadosa, depois de bater Ă  porta com pouca força, entrar no meu quarto e perguntar: nĂŁo te apetece dar um passeio? Na maioria das vezes, nĂŁo tenho disposição para lhe responder mas, nessa tarde, estava a meio de um capĂ­tulo altruĂ­sta e decidi fazer-lhe a vontade. O volante do carro, as minhas mĂŁos a sentirem todas as pedras quase como se estivesse a deslizĂĄ-las na estrada. Estacionei no campo, a pouca distĂąncia de um grupo de homens e mulheres, botas de borracha, que estavam a apanhar azeitona. Espalhavam uma gritaria animada que nĂŁo se alterou quando saĂ­ do carro e me aproximei, boa tarde. Uma vantagem do meu nome Ă© que dispenso alcunha. Olha o Livro, boa tarde. O sol estava a pĂŽr-se. Troquei graças, enquanto dois homens recolheram os panĂ”es carregados debaixo da Ășltima oliveira e os levaram Ă s costas.
Não esqueço o que vi a seguir. As mulheres dobraram os panÔes vazios e dispuseram-nos na terra, em forma de corredor.

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Tive um Cavalo de CartĂŁo

Mulher. A tua pele branca foi um verão que quis viver e me foi negado. Um caminho que não me enganou. Enganou-me a luz e os olhos foscos das manhãs revividas. Enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui, a correr pelos campos todo o dia, a medir as searas pelo tamanho dos braços abertos; enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui no teu homem e no teu rosto, no teu filho, nosso. Não hå manhãs para reviver, sei-o hoje. Não se podem construir dias novos sobre manhãs que se recordam. Inventei-te talvez, partindo de uma estrela como todas estas. Quis ter uma estrela e dar-lhe as manhãs de julho. As grandes manhãs de julho diante de casa e a minha mãe a acabar o almoço bom e o meu pai a chegar e a ralhar, sem ser a sério, por o almoço não estar pronto e eu sentado na terra, talvez a fazer um barroco, talvez a brincar com o cavalo de cartão. Tive um cavalo de cartão. Nunca te contei, pouco te contei, mas tive um cavalo de cartão. Brincava com ele e era bonito. Gostava muito dele. Tanto. Tanto. Tanto. Quando o meu pai mo trouxe,

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Em Tudo o que Fiz Bem Pus um Pouco de Ti

Eis o teu rosto iluminado por esta hora de maio.
Ao filho autĂȘntico, basta fechar os olhos para encontrar o rosto da sua mĂŁe.
A fronteira que separa o dentro do fora Ă© vaga de propĂłsito, mais exata Ă© a fronteira dos meses.
MĂŁe, as tardes de maio nĂŁo sĂŁo um acaso.
Pus um pouco de ti naquilo que fiz de mais importante.
Onde existir terra estås tu, dås força e horizonte.
O ar não permitiria respiração se não te contivesse.
A ågua não seria capaz de alimentar sem a tua presença líquida.
O fogo não chegaria a acender se não incluísse o teu mistério no seu mistério.
Estavas jĂĄ no primeiro inĂ­cio do firmamento, nesse rugido que encheu a superfĂ­cie do cĂ©u e da terra, que rasgou as trevas; da mesma maneira, estarĂĄs no seu Ășltimo fim.
EstĂĄs antes e depois.
EstĂĄs na lenta passagem da eternidade.
MĂŁe, atravessas a vida e a morte como a verdade atravessa o tempo, como os nomes atravessam aquilo que nomeiam.
Sabes que criei tudo o que hå e sabes também que não criei tudo o que poderia haver.
Entre as faltas evidentes,

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