Textos sobre Distùncia de José Luís Peixoto

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Textos de distùncia de José Luís Peixoto. Leia este e outros textos de José Luís Peixoto em Poetris.

Nunca Me Tinha Apaixonado Verdadeiramente

Escrevi atĂ© o princĂ­pio da manhĂŁ aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofĂĄ grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pĂȘlo dos gatos. O sol a chegar Ă  escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas pĂĄginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lĂĄbios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silĂȘncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhĂĄ-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercĂ­cio, conseguia escrever duas palavras ou, no mĂĄximo, uma frase. Quando a manhĂŁ apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhĂĄ-la. Adormeci com ela dentro de mim.

Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois,

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O Significado do Amor

Eu pensava que conhecia o significado do amor. O amor Ă© o sangue do sol dentro do sol. A inocĂȘncia repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o cĂ©u compreenda. Levantam-se tempestades frĂĄgeis e delicadas na respiração vegetal do amor. Como uma planta a crescer da terra. O amor Ă© a luz do sol a beber a voz doce dessa planta. Algo dentro de qualquer coisa profunda.

O amor Ă© o sentido de todas as palavras impossĂ­veis. Atravessar o interior de uma montanha. Correr pelas horas originais do mundo. O amor Ă© a paz fresca e a combustĂŁo de um incĂȘndio dentro, dentro, dentro, dentro, dentro dos dias. Em cada instante de manhĂŁ, o cĂ©u a deslizar como um rio. A tarde, o sol como uma certeza. O amor Ă© feito de claridade e da seiva das rochas. O amor Ă© feito de mar, de ondas na distĂąncia do oceano e de areia eterna. O amor Ă© feito de tantas coisas opostas e verdadeiras. Nascem lugares para o amor e, nesses jardins etĂ©reos, a salvação Ă© uma brisa que cai sobre o rosto suavemente.

Eu acreditava mesmo que o amor Ă© o sangue do sol dentro do sol.

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Ao Longo da Escrita deste Livro

No ano passado, em outubro, talvez a 27, sei que foi a uma terça-feira, a minha mĂŁe incentivou-me a dar um passeio. HĂĄ muito que desistiu de me dissuadir dos livros, tanto lĂȘs que treslĂȘs, mas mantĂ©m o hĂĄbito de, cuidadosa, depois de bater Ă  porta com pouca força, entrar no meu quarto e perguntar: nĂŁo te apetece dar um passeio? Na maioria das vezes, nĂŁo tenho disposição para lhe responder mas, nessa tarde, estava a meio de um capĂ­tulo altruĂ­sta e decidi fazer-lhe a vontade. O volante do carro, as minhas mĂŁos a sentirem todas as pedras quase como se estivesse a deslizĂĄ-las na estrada. Estacionei no campo, a pouca distĂąncia de um grupo de homens e mulheres, botas de borracha, que estavam a apanhar azeitona. Espalhavam uma gritaria animada que nĂŁo se alterou quando saĂ­ do carro e me aproximei, boa tarde. Uma vantagem do meu nome Ă© que dispenso alcunha. Olha o Livro, boa tarde. O sol estava a pĂŽr-se. Troquei graças, enquanto dois homens recolheram os panĂ”es carregados debaixo da Ășltima oliveira e os levaram Ă s costas.
Não esqueço o que vi a seguir. As mulheres dobraram os panÔes vazios e dispuseram-nos na terra, em forma de corredor.

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Os Professores

O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegåmos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objectos até que, por fim, conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa de nos actualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.

O material que Ă© trabalhado pelos professores nĂŁo pode ser quantificado. NĂŁo hĂĄ nĂșmeros ou casas decimais com suficiente precisĂŁo para medi-lo. A falta de quantificação nĂŁo Ă© culpa dos assuntos inquantificĂĄveis, Ă© culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores nĂŁo vendem o material que trabalham, oferecem-no. NĂłs, com o tempo, com os anos, com a distĂąncia entre nĂłs e nĂłs, somos levados a acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos que esse material Ă© nosso, achamos que nĂłs prĂłprios somos esse material. Por ironia ou capricho, Ă© nesse momento que o trabalho dos professores se efectiva.

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