Citação de

Ao Longo da Escrita deste Livro

No ano passado, em outubro, talvez a 27, sei que foi a uma terça-feira, a minha mĂŁe incentivou-me a dar um passeio. HĂĄ muito que desistiu de me dissuadir dos livros, tanto lĂȘs que treslĂȘs, mas mantĂ©m o hĂĄbito de, cuidadosa, depois de bater Ă  porta com pouca força, entrar no meu quarto e perguntar: nĂŁo te apetece dar um passeio? Na maioria das vezes, nĂŁo tenho disposição para lhe responder mas, nessa tarde, estava a meio de um capĂ­tulo altruĂ­sta e decidi fazer-lhe a vontade. O volante do carro, as minhas mĂŁos a sentirem todas as pedras quase como se estivesse a deslizĂĄ-las na estrada. Estacionei no campo, a pouca distĂąncia de um grupo de homens e mulheres, botas de borracha, que estavam a apanhar azeitona. Espalhavam uma gritaria animada que nĂŁo se alterou quando saĂ­ do carro e me aproximei, boa tarde. Uma vantagem do meu nome Ă© que dispenso alcunha. Olha o Livro, boa tarde. O sol estava a pĂŽr-se. Troquei graças, enquanto dois homens recolheram os panĂ”es carregados debaixo da Ășltima oliveira e os levaram Ă s costas.
NĂŁo esqueço o que vi a seguir. As mulheres dobraram os panĂ”es vazios e dispuseram-nos na terra, em forma de corredor. Os panĂ”es carregados de azeitonas e folhas foram despejados num monte, no extremo desse corredor. EntĂŁo, fez-se silĂȘncio. Era um fim de tarde muito nĂ­tido. Um dos homens aproximou-se do monte a segurar uma pĂĄ e, com jeito, encheu-a. Num movimento certo, preciso, lançou o seu conteĂșdo mĂșltiplo ao longo do corredor de panĂ”es. No ar, estilhaçou-se. Sob um fundo de cĂ©u, as azeitonas separaram-se das folhas. As folhas ficaram a meio caminho, a darem voltas sobre si prĂłprias, pequenas hĂ©lices detidas pela aragem, e as azeitonas continuaram atĂ© ao outro extremo do corredor de panĂ”es dobrados, onde caĂ­ram numa chuva de companheiras redondas. Recordo que as folhas de oliveira sĂŁo verde-escuras de um lado e prateadas do outro, elegantes, e que as azeitonas, aquelas, sĂŁo pretas, brilhantes, sem demasiada ĂĄgua em março, rijas. Esse gesto, essa histĂłria, repetiu-se atĂ© acabar o primeiro monte e, no outro extremo do corredor, haver um monte apenas com azeitonas.
Ao longo da escrita deste livro que estĂĄs a ler, tenho sentido que gostaria de poder fazer o mesmo com o que sei. No campo, num fim de tarde, estender esse conhecimento no ar, em pazadas, e assim separar aquilo que apenas presumo daquilo que foi mesmo. Por mais efeito que possa ter aquilo que presumo, Ă© aquilo que foi mesmo que chega ao lagar, que alimenta. Aquilo que foi mesmo nĂŁo Ă© necessariamente aquilo que aconteceu. É algo muito mais importante, Ă© a verdade. Sim, jĂĄ sei, o que Ă© a verdade? Sim, jĂĄ sei, nĂŁo sei.