Textos sobre SilĂȘncio de JosĂ© LuĂ­s Peixoto

9 resultados
Textos de silĂȘncio de JosĂ© LuĂ­s Peixoto. Leia este e outros textos de JosĂ© LuĂ­s Peixoto em Poetris.

Acreditei que Podia Dar-te um CĂ©u para Brincares

Filho. Gostava que houvesse uma aragem qualquer que me explicasse esse teu sorriso e outra que te explicasse, sem te magoar, o meu silĂȘncio. Gostava de aprender o trejeito dos teus lĂĄbios, a maneira dos teus olhos, e to lembrar quando tivesses a minha idade. Fui um dia a tua inocĂȘncia. E dela ficou-me a grande inocĂȘncia de acreditar.
Acreditei que podia dar-te um céu para brincares e que a vida seria o que nós quiséssemos. Assim. Bastaria querermos, esforçarmo-nos muito, trabalharmos, e teríamos então o que desejåssemos. Não digo coisas majestosas, roupas bonitas ou charretes, mas comida, comida gostosa e bem temperada, e um cavalo de cartão novo, se por acaso esquecesses o teu no quintal numa noite de chuva. Acreditei que a felicidade dos teus olhos a sorrir podia voltar aos olhos da tua mãe, aos meus e perdurar intocada nos teus. Acreditei em tantas coisas. Sabes, aproximo-me da vila e o que me espera é morrer um pouco mais. Preferia que não o soubesses, mas infelizmente nem isso posso esconder-te, porque um dia, quando te contarem a história da tua vida, dir-te-ão que numa noite de estrelas, o teu pai foi à vila e levou uma sova;

Continue lendo…

Uma Casa Cheia de Livros

Os livros, esses animais sem pernas, mas com olhar, observam-nos mansos desde as prateleiras. NĂłs esquecemo-nos deles, habituamo-nos ao seu silĂȘncio, mas eles nĂŁo se esquecem de nĂłs, nĂŁo fazem uma pausa mĂ­nima na sua vigia, sentinelas atĂ© daquilo que nĂŁo se vĂȘ. Desde as estantes ou pousados sem ordem sobre a mesa, os livros conseguem distinguir o que somos sem qualquer expressĂŁo porque eles sabem, eles existem sobretudo nesse nĂ­vel transparente, nessa dimensĂŁo sussurrada. Os livros sabem mais do que nĂłs mas, sem defesa, estĂŁo Ă  nossa mercĂȘ. Podemos atirĂĄ-los Ă  parede, podemos atirĂĄ-los ao ar, folhas a restolhar, ar, ar, e vĂȘ-los cair, duros e sĂ©rios, no chĂŁo.

(…) Os livros, esses animais opacos por fora, essas donzelas. Os livros caem do cĂ©u, fazem grandes linhas rectas e, ao atingir o chĂŁo, explodem em silĂȘncio. Tudo neles Ă© absoluto, atĂ© as contradiçÔes em que tropeçam. E estĂŁo lĂĄ, aqui, a olhar-nos de todos os lados, a hipnotizar-nos por telepatia. Devemos-lhes tanto, atĂ© a loucura, atĂ© os pesadelos, atĂ© a esperança em todas as suas formas.

A Mulher de Negro

Os sons da floresta, as ĂĄrvores, a bicicleta e, ao longe, o silĂȘncio imĂłvel de um vulto negro. Aproximei-me e era uma mulher vestida de negro. Um xaile negro sobre os ombros. Um lenço negro sobre a cabeça. O som dos pneus da bicicleta a pararem, o som de amassarem folhas hĂșmidas e de fazerem estalar ramos. Os meus pĂ©s a pousarem no chĂŁo. Os olhos da mulher entre o negro. Os olhos pequenos da mulher. O seu rosto branco. Vimo-nos como se nos encontrĂĄssemos, como se nos tivĂ©ssemos perdido havia muito tempo e nos encontrĂĄssemos. O tempo deixou de existir. O silĂȘncio deixou de existir. Pousei a bicicleta no chĂŁo para caminhar na direcção da mulher. Era atraĂ­do por segredos. Durante os meus passos, a mulher estendeu-me a mĂŁo. A sua mĂŁo era muito velha. A palma da sua mĂŁo tinha linhas que eram o mapa de uma vida inteira, uma vida com todos os seus enganos, com todos os seus erros, com todas as suas tentativas. Os seus olhos de pedra. Senti os ossos da sua mĂŁo a envolverem os meus dedos. NĂŁo me puxou, mas eu aproximei o meu corpo do seu. Senti a sua respiração no meu pescoço.

Continue lendo…

Ao Longo da Escrita deste Livro

No ano passado, em outubro, talvez a 27, sei que foi a uma terça-feira, a minha mĂŁe incentivou-me a dar um passeio. HĂĄ muito que desistiu de me dissuadir dos livros, tanto lĂȘs que treslĂȘs, mas mantĂ©m o hĂĄbito de, cuidadosa, depois de bater Ă  porta com pouca força, entrar no meu quarto e perguntar: nĂŁo te apetece dar um passeio? Na maioria das vezes, nĂŁo tenho disposição para lhe responder mas, nessa tarde, estava a meio de um capĂ­tulo altruĂ­sta e decidi fazer-lhe a vontade. O volante do carro, as minhas mĂŁos a sentirem todas as pedras quase como se estivesse a deslizĂĄ-las na estrada. Estacionei no campo, a pouca distĂąncia de um grupo de homens e mulheres, botas de borracha, que estavam a apanhar azeitona. Espalhavam uma gritaria animada que nĂŁo se alterou quando saĂ­ do carro e me aproximei, boa tarde. Uma vantagem do meu nome Ă© que dispenso alcunha. Olha o Livro, boa tarde. O sol estava a pĂŽr-se. Troquei graças, enquanto dois homens recolheram os panĂ”es carregados debaixo da Ășltima oliveira e os levaram Ă s costas.
Não esqueço o que vi a seguir. As mulheres dobraram os panÔes vazios e dispuseram-nos na terra, em forma de corredor.

Continue lendo…

Na Tua Voz, IrmĂŁo

Estavam sentados e não falavam. Cada um olhava para um lado que não via. Atrås dos rostos tristes, cismavam. Pensando, Moisés dizia palavras ao irmão, esperançado de que ele as ouvisse; no pensamento, dizia serå um instante e trarå a solidão. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro. Jå reparaste?, nunca precisåmos de nos chamar. Não sei como é o meu nome na tua voz. Na tua voz, irmão, irmão. Não sei como é o teu nome na minha voz. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro, e o desespero serå a antecùmara de uma dor triste a que nos habituaremos, como se habitua um homem sem coração ao espaço negro no peito. Viveste sempre na minha vida, e eu estive sempre contigo quando sorriste. Hoje, a solidão. Desapareceremos um do outro, deixaremos de ser nós para sermos só tu e só eu. Mas não esqueceremos. E lembrarmo-nos serå o maior sofrimento, recordarmos o que fomos onde estivermos e não podermos ser mais nada nesse dia. Lembrarmo-nos de quando acordåvamos e olhåvamos um para o outro, pois tínhamos acordado ao mesmo tempo e tínhamos ao mesmo tempo pensado em ver-nos. Lembrarmo-nos de falar na nossa maneira de falar,

Continue lendo…

A Voz que Ouço quando Leio

Quando leio, hĂĄ uma voz que lĂȘ dentro de mim. Paro o olhar sobre o texto impresso, mas nĂŁo acredito que seja o meu olhar que lĂȘ. O meu olhar fica embaciado. É essa voz que lĂȘ. Quando Ă© sĂ©ria, ouço-a falar-me de assuntos sĂ©rios. Às vezes, sussurra-me. Às vezes, grita-me. Essa voz nĂŁo Ă© a minha voz. NĂŁo Ă© a voz que, em filmagens de festas de anos e de natais, vejo sair da minha boca, do movimento dos meus lĂĄbios, a voz que estranho por, num rosto parecido com o meu, nĂŁo me parecer minha. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas nĂŁo Ă© minha. NĂŁo Ă© a voz dos meus pensamentos. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas Ă© exterior a mim. É diferente de mim. Ainda assim, nĂŁo acredito que alguĂ©m possa ter uma voz que lĂȘ igual Ă  minha, por isso Ă© minha mas nĂŁo Ă© minha. Mas, claro, nĂŁo posso ter a certeza absoluta. NĂŁo sĂł porque uma voz Ă© indescritĂ­vel, mas tambĂ©m porque nunca ninguĂ©m me tentou descrever a voz que ouve quando lĂȘ e porque eu nunca falei com ninguĂ©m da voz que ouço quando leio.

Continue lendo…

Em Tudo o que Fiz Bem Pus um Pouco de Ti

Eis o teu rosto iluminado por esta hora de maio.
Ao filho autĂȘntico, basta fechar os olhos para encontrar o rosto da sua mĂŁe.
A fronteira que separa o dentro do fora Ă© vaga de propĂłsito, mais exata Ă© a fronteira dos meses.
MĂŁe, as tardes de maio nĂŁo sĂŁo um acaso.
Pus um pouco de ti naquilo que fiz de mais importante.
Onde existir terra estås tu, dås força e horizonte.
O ar não permitiria respiração se não te contivesse.
A ågua não seria capaz de alimentar sem a tua presença líquida.
O fogo não chegaria a acender se não incluísse o teu mistério no seu mistério.
Estavas jĂĄ no primeiro inĂ­cio do firmamento, nesse rugido que encheu a superfĂ­cie do cĂ©u e da terra, que rasgou as trevas; da mesma maneira, estarĂĄs no seu Ășltimo fim.
EstĂĄs antes e depois.
EstĂĄs na lenta passagem da eternidade.
MĂŁe, atravessas a vida e a morte como a verdade atravessa o tempo, como os nomes atravessam aquilo que nomeiam.
Sabes que criei tudo o que hå e sabes também que não criei tudo o que poderia haver.
Entre as faltas evidentes,

Continue lendo…

Pai, Quero que Saibas

É o teu rosto que encontro. Contra nĂłs, cresce a manhĂŁ, o dia, cresce uma luz fina. Olho-te nos olhos. Sim, quero que saibas, nĂŁo te posso esconder, ainda hĂĄ uma luz fina sobre tudo isto. Tudo se resume a esta luz ïŹna a recordar-me todo o silĂȘncio desse silĂȘncio que calaste. Pai. Quero que saibas, cresce uma luz ïŹna sobre mim que sou sombra, luz ïŹna a recortar-me de mim, tĂ©nue, sombra apenas. NĂŁo te posso esconder, depois de ti, ainda hĂĄ tudo isto, toda esta sombra e o silĂȘncio e a luz fina que agora Ă©s.

Nunca Me Tinha Apaixonado Verdadeiramente

Escrevi atĂ© o princĂ­pio da manhĂŁ aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofĂĄ grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pĂȘlo dos gatos. O sol a chegar Ă  escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas pĂĄginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lĂĄbios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silĂȘncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhĂĄ-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercĂ­cio, conseguia escrever duas palavras ou, no mĂĄximo, uma frase. Quando a manhĂŁ apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhĂĄ-la. Adormeci com ela dentro de mim.

Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois,

Continue lendo…