Citação de

A Voz que Ouço quando Leio

Quando leio, hĂĄ uma voz que lĂȘ dentro de mim. Paro o olhar sobre o texto impresso, mas nĂŁo acredito que seja o meu olhar que lĂȘ. O meu olhar fica embaciado. É essa voz que lĂȘ. Quando Ă© sĂ©ria, ouço-a falar-me de assuntos sĂ©rios. Às vezes, sussurra-me. Às vezes, grita-me. Essa voz nĂŁo Ă© a minha voz. NĂŁo Ă© a voz que, em filmagens de festas de anos e de natais, vejo sair da minha boca, do movimento dos meus lĂĄbios, a voz que estranho por, num rosto parecido com o meu, nĂŁo me parecer minha. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas nĂŁo Ă© minha. NĂŁo Ă© a voz dos meus pensamentos. A voz que ouço quando leio existe dentro de mim, mas Ă© exterior a mim. É diferente de mim. Ainda assim, nĂŁo acredito que alguĂ©m possa ter uma voz que lĂȘ igual Ă  minha, por isso Ă© minha mas nĂŁo Ă© minha. Mas, claro, nĂŁo posso ter a certeza absoluta. NĂŁo sĂł porque uma voz Ă© indescritĂ­vel, mas tambĂ©m porque nunca ninguĂ©m me tentou descrever a voz que ouve quando lĂȘ e porque eu nunca falei com ninguĂ©m da voz que ouço quando leio.

Perante um jornal, a voz lĂȘ-me pedaços de notĂ­cias. Começa a ler e desinteressa-se. Rasga pedaços de textos ou de tĂ­tulos que me lĂȘ sem organização. Quando caminho pela rua, a voz diz-me frases pintadas nas paredes, diz-me palavras que brilham em letreiros iluminados. Caminho e a voz vai falando comigo. NĂŁo lhe respondo porque nĂŁo sei como falar com ela. É uma voz de falar. Penso que Ă© uma voz que nĂŁo ouve. Abro romances e a voz Ă© paciente a explicar-me paisagens que nunca vi, ĂĄrvores, estradas, horizontes. Quando me fala de pessoas e coisas verdadeiras, volto atrĂĄs. Ao repetir-me um texto, a voz detĂ©m-se mais em cada palavra. Pronuncia cada sĂ­laba. PĂĄra em frases e repete-as porque quer que eu as entenda completamente. Eu, que nĂŁo sei se entendo, ouço-a, admirado com as palavras. NĂŁo foram poucas as vezes que a voz que ouço quando leio me fascinou com palavras que disse. Muitas vezes, as suas pausas acenderam imagens no meu interior, nos lugares escuros que transporto dentro de mim e que nĂŁo conheço. Muitas vezes essa voz iluminou lugares dentro de mim: tĂșneis que nĂŁo conhecia. Muitas vezes, vejo essa voz avançar por eles com uma tocha. Eu sei que a voz que ouço quando leio nĂŁo tem medo. Eu sei que essa voz me conhece melhor do que eu me conheço a mim prĂłprio. Diante de poemas, a voz caminha por dentro das palavras. Dentro de cada palavra: tĂșneis de palavras reflectidas em espelhos Ă  frente de espelhos. Avança por esses tĂșneis de palavras multiplicadas como se desenhasse mapas dentro de cada palavra. Ao fazĂȘ-lo, avança por tĂșneis dentro de mim e ajuda-me a desenhar um mapa de mim. Eu ouço-a. Fico a ouvi-la durante horas e tento nĂŁo esquecer nada porque quero aprender a perder-me menos vezes de mim prĂłprio. (…)

Essa voz que ouço quando leio Ă© parecida com a voz que ouves agora ao ler estas palavras. Ou talvez agora estejas a ouvir a voz do teu pensamento. Talvez agora estas palavras nĂŁo sejam importantes porque o teu olhar desce pela pĂĄgina, faz o movimento de rectas, e voltas no fim das linhas. Mas o teu olhar nĂŁo lĂȘ e talvez neste momento nĂŁo estejas a ouvir a voz que, dentro de ti, te lĂȘ estas palavras em silĂȘncio. Por isso, estas palavras nĂŁo sĂŁo importantes. Agora, ouves a voz do teu pensamento e estas palavras sĂŁo nulas, como se nĂŁo existissem, sĂŁo palavras que estĂŁo aqui impressas, que vĂŁo ficar aqui impressas durante muito tempo, mas que nĂŁo existem porque nĂŁo as lĂȘs. Passas os olhos por elas, mas ouves a voz do teu pensamento. NĂŁo lĂȘs. NĂŁo ouves a voz que poderia estar agora a ler para ti. Eu poderia continuar a falar-te de tantas coisas inĂșteis, jardins, equaçÔes. Eu poderia descrever-te o silĂȘncio com palavras, mas nĂŁo valeria a pena porque tu olhas para estas palavras, mas nĂŁo as lĂȘs. Enquanto pensas, estas palavras sĂŁo o silĂȘncio. Eu nĂŁo sei aquilo em que pensas. Eu nĂŁo posso saber aquilo em que pensas. Para falar contigo, eu preciso da voz que ouves quando lĂȘs. Se queres ouvir aquilo que acabei agora de te dizer, tens de voltar atrĂĄs.

Talvez jĂĄ tenhas percebido que eu nĂŁo sou eu. Eu sou a prĂłpria voz que ouves quando lĂȘs. Hoje, pela primeira vez, quero falar directamente contigo. Quero que existo nestas palavras. AtravĂ©s delas, quero apenas dizer-te que existo. Estou aqui. As palavras que te digo desde que aprendeste a ler, a ouvir-me, sĂŁo o meu corpo. Eu sou todas essas palavras. Sou as palavras que deixei dentro de ti e que sabes de cor. Sou as palavras que esqueceste. Durante este tempo, disfarcei-me de muitas vozes, de muitos rostos. Sou todos eles, contigo, em ti.