Aqui Louvo os Animais
Súbdito só de quem não reina,
aqui louvo os animais.
Há, entre mim e eles, uma funda
relação de videntes:
as paisagens que fendem
e a minha, sepulta,
perfazem um mesmo habitat.
Desde que os não sondo,
fez-se luz em nosso convívio.
O ar inicial
que ensaiava, icárico,
nas bolas de sabão,
mas não atina com o vácuo
da cidade, vem-me
dos seus pulmões arborescentes.
Alheios à sua pele
na osmose dos textos,
ignoram que nas águas
por correr, desta página,
cruzam, saudando-se,
o «Beagle» e a Arca de Noé.
Passagens sobre Texto
77 resultadosO computador tem possibilidades de mais para aquilo de que eu preciso. Não quero saber coisas de computadores. Quero apenas saber o necessário para escrever os meus textos e as minhas planificações. O resto das capacidades dos computadores só me atrapalha.
Amo-te
Talvez não seja próprio vir aqui, para as páginas deste livro, dizer que te amo. Não creio que os leitores deste livro procurem informações como esta. No mundo, há mais uma pessoa que ama. Qual a relevância dessa notícia? À sombra do guarda-sol ou de um pinheiro de piqueniques, os leitores não deverão impressionar-se demasiado com isso. Depois de lerem estas palavras, os seus pensamentos instantâneos poderão diluir-se com um olhar em volta. Para eles, este texto será como iniciais escritas por adolescentes na areia, a onda que chega para cobri-las e apagá-las. E possível que, perante esta longa afirmação, alguns desses leitores se indignem e que escrevam cartas de protesto, que reclamem junto da editora. Dou-lhes, desde já, toda a razão.
Eu sei. Talvez não seja próprio vir aqui dizer aquilo que, de modo mais ecológico, te posso afirmar ao vivo, por email, por comentário do facebook ou mensagem de telemóvel, mas é tão bom acreditar, transporta tanta paz. Tu sabes. Extasio-me perante este agora e deixo que a sua imensidão me transcenda, não a tento contrariar ou reduzir a qualquer coisa explicável, que tenha cabimento nas palavras, nestas pobres palavras. Em vez disso, desfruto-a, sorrio-lhe. Não estou aqui com a expectativa de ser entendido.
Mulher: a estaca na qual o esperto aplica suas zombarias, o pastor seus textos, o cínico suas queixas e o pecador sua justifica.
Os Escritores Medíocres
Essas mentes medíocres simplesmente não se conseguem decidir a escrever como pensam, pois acham que depois o resultado poderia adquirir uma aparência muito simplória. […] Desse modo, apresentam o que têm a dizer com construções forçadas e difíceis, neologismos e períodos extensos, que circundam o pensamento e acabam por o ocultar. Oscilam entre o esforço de o comunicar e o esforço de o esconder. Querem guarnecer o texto de modo que ele adquira uma aparência erudita ou profunda, para que as pessoas pensem que ele contém mais do que se consegue perceber no momento da leitura. Sendo assim, esboçam partes do seu pensamento em expressões curtas, ambíguas e paradoxais, que parecem significar muito mais do que dizem; logo voltam a apresentar os seus pensamentos com uma torrente de palavras e uma verbosidade insuportável, como se fossem necessárias sabe-se lá que medidas para tornar compreensível o seu sentido profundo, enquanto, na verdade, se trata de uma ideia bastante simples, para não dizer até trivial.
O Presente sem Passado nem Futuro
Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje – tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara -, que posso presumir da minha vida de amanhã senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim.
O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto.
Sentir, amar, sofrer, devotar-se, será sempre o texto da vida das mulheres.
Não Sabemos Ler o Mundo
Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não lêem livros. Mas o deficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.
Vale a pena ler livros ou ler a Vida quando o acto de ler nos converte num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens.
Nós mudamos incessantemente. Mas se pode afirmar também que cada releitura de um livro e cada lembrança dessa releitura renovam o texto.
Os primeiros quarenta anos de vida dão-nos o texto: os trinta anos seguintes, dão-nos o comentário sobre ela.
O texto bíblico não diz: «Deus pronunciou estes mandamentos», mas «estas palavras». A tradição hebraica chamará sempre ao Decálogo «as Dez palavras». Portanto, porque usa o Autor sagrado, logo aqui, o termo «Dez Palavras», e não «Dez Mandamentos»? Há uma diferença entre uma ordem e uma palavra. A ordem é uma comunicação que não requer diálogo. A palavra, em vez disso, é o meio essencial da relação como diálogo.
Mas é possível escrever os principais textos de nossa vida nos momentos mais difíceis de nossa existência.
Aperta-me para Sempre
O dia adormece-me debaixo dos olhos, e as tuas mãos são a pele que Deus escolheu para tocar o mundo; não existe nenhum lugar mais divino do que o teu beijo, e quando quero voar deito-me a teus pés.
Peço-te que não vás, que fiques apenas para eu ficar, que permaneças no teu lado da cama, e eu no meu, a sentirmos que o tempo corre, e podes até adormecer, podes ler a revista das mulheres das passadeiras vermelhas e os homens com os abdominais que ninguém tem, ou simplesmente olhar o tecto e pensar em ti; eu fico aqui, a olhar-te para saber que existo, a pensar no quanto te quero e no tamanho que tem o teu corpo dentro do meu. Saber que há a curva das tuas costas para encontrar a curva da vida, percorrer com os olhos o cair do teu suor, e perceber a eternidade possível.
A imortalidade é um orgasmo contigo.
Gemes até ao fim do mundo por dentro dos meus ouvidos, todo o meu corpo se vem quando estás a chegar, e a verdade do universo é a física exígua do espaço entre nós. Aperta-me para sempre até ao princípio dos ossos,
Sabendo interpretar o que lê, o estudante organiza as idéias e produz bom texto. O resto é conversa, falsa teoria.
A Inveja não tem Passado
Ainda não tendes advertido, que a inveja faz grande diferença dos mortos aos vivos, e dos presentes aos passados? Os olhos da inveja são como os do Sacerdote Heli, dos quais diz o Texto sagrado, que não podiam ver a luz do Templo, senão depois que se apagava: Oculi ejus caligaverant, nec poterat videre lucernam Dei, antequam extingueretur. Enquanto as luzes são vivas, cada reflexo delas é um raio, que cega os olhos da inveja: porém depois que elas se apagaram, e muito mais se se metem largos anos em meio, então abre a inveja, como ave nocturna, os olhos; então vê o que não podia ver: então venera e celebra essas mesmas luzes, e levanta sobre as Estrelas seus resplendores. Por isso disse com grande juízo S. Zeno Veronense, que todo o invejoso é inimigo dos presentes, e amigo dos passados: In omnibus se inimicum praesentium servat, amicum vero pereuntium. Os mesmos que agora amam, e veneram tanto a Santo António, se viveram em seu tempo, o haviam de aborrecer e perseguir; e as mesmas maravilhas, que tanto celebram e encarecem, se foram obradas na sua Pátria, as haviam de escurecer e aniquilar.
Não Há Verdadeiro Sentido de um Texto
Não há verdadeiro sentido de um texto. Não há autoridade do autor. Quisesse dizer o que quisesse, escreveu o que escreveu. Uma vez publicado, um texto é como um aparelho de que cada um se pode servir à sua maneira e segundo os seus meios: não é certo que o construtor o use melhor do que outro qualquer.
A Casa do Escritor
O escritor organiza-se no seu texto como em sua casa. Comporta-se nos seus pensamentos como faz com os seus papéis, livros, lápis, tapetes, que leva de um quarto para o outro, produzindo uma certa desrodem. Para ele, tornam-se peças de mobiliário em que se acomoda, com gosto ou desprazer. Acaricia-os com delicadeza, serve-se deles, revira-os, muda-os de sítio, desfá-los. Quem já não tem nenhuma pátria, encontra no escrever a sua habitação. E aí produz, como outrora a família, desperdícios e lixo.
Mas já não dispõe de desvão e é-lhe muitíssimo difícil livrar-se da escória. Por isso, ao tirá-la da sua frente, corre o risco de acabar por encher com ela as suas páginas. A exigência de resistir à auto-compaixão inclui a exigência técnica de defrontar com extrema atenção o relaxamento da tensão intelectual e de eliminar tudo quanto tenda a fixar-se como uma crosta no trabalho, tudo o que decorre no vazio, o que talvez suscitasse, num estádio anterior, como palavriado, a calorosa atmosfera em que emerge, mas agora permanece bafiento e insípido. Por fim, já nem sequer é permitido ao escritor habitar nos seus escritos.
Presos ao Passado
Num romance que estou escrevendo há uma personagem a quem perguntam: «E onde irás ser sepultado?» E ela responde: «A minha sepultura maior não mora no futuro. A minha cova é o meu passado.»
De facto, cada um de nós corre o risco de ficar sepultado no seu próprio passado. Todos temos de resistir para não ficarmos aprisionados numa memória simplificada que é o retrato que outros fizeram de nós. Todos trazemos escrito um livro e esse texto quer-se impor como nossa nascente e como nosso destino. Se existe uma guerra em cada um de nós é a de nos opormos a esse fado de estarmos condenados a uma única e previsível narrativa.
O senhor não estava no granizo, na chuva, na tempestade, no vento… O senhor falou ao profeta Elias na brisa suave. No texto bíblico original é usada uma palavra belíssima, que não se pode traduzir com exatidão: a voz de Deus era um fio sonoro de silêncio.
Assim se avizinha o Senhor, com aquela «sonoridade do silêncio» que é própria do amor.
Sou o Pedro Chagas Freitas e fabrico ideias. Esbofeteiem-me. Sou o Pedro Chagas Freitas e não há um dia só que passe sem inventar algo de novo. Pode ser um texto, uma construção frásica, um uso radical de um sinal de pontuação. Ou então um jogo para crianças, um conceito de programa de televisão, um livro que é tão especial que nem ordem tem. Eu sou o Pedro Chagas Freitas e sou um idiota: eis tudo. Antes um idiota ostracizado do que um génio domesticado.