Não és os Outros
Não há-de te salvar o que deixaram
Escrito aqueles que o teu medo implora;
Não és os outros e encontras-te agora
No meio do labirinto que tramaramTeus passos. Não te salva a agonia
De Jesus ou de Sócrates ou o forte
Siddharta de ouro que aceitou a morte
Naquele jardim, ao declinar o dia.Também é pó cada palavra escrita
Por tua mão ou o verbo pronunciado
Pela boca. Não há pena no FadoE a noite de Deus é infinita.
Tua matéria é o tempo, o incessante
Tempo. E és cada solitário instante.Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Passagens sobre Pena
624 resultadosConfessai que o que é já sabido, em suma, não vale a pena que se saiba.
Gosto tanto da convalescença! É a parte que faz a doença valer a pena!
A Minha Hora
Que horas são? O meu relógio está parado,
Há quanto tempo!…
Que pena o meu relógio estar parado
E eu não poder marcar esta hora extraordinária!
Hora em que o sonho ascende, lento, muito lento,
Hora som de violino a expirar… Hora vária,
Hora sombra alongada de convento…Hora feita de nostalgia
Dos degredados…
Hora dos abandonados
E dos que o tédio abate sem cessar…
Hora dos que nunca tiveram alegria,
Hora dos que cismam noite e dia,
Hora dos que morrem sem amar…Hora em que os doentes de corpo e alma,
Pedem ao Senhor para os sarar…
Hora de febre e de calma,
Hora em que morre o sol e nasce o luar…
Hora em que os pinheiros pela encosta acima,
São monges a rezar…Hora irmã da caridade
Que dá remédio aos que o não têm…
Hora saudade…
Hora dos Pedro Sem…
Hora dos que choram por não ter vivido,
Hora dos que vivem a chorar alguém…Hora dos que têm um sonho águia mas… ai!
Águia sem asas para voar…
Senhora Já Dest’alma, Perdoai
Senhora já dest’alma, perdoai
de um vencido de Amor os desatinos,
e sejam vossos olhos tão beninos
com este puro amor, que d’alma sai.A minha pura fé somente olhai,
e vede meus extremos se são finos;
e se de algüa pena forem dinos,
em mim, Senhora minha, vos vingai.Não seja a dor que abrasa o triste peito
causa por onde pene o coração,
que tanto em firme amor vos é sujeito.Guardai-vos do que alguns, Dama, dirão,
que, sendo raro em tudo vosso objeito,
possa morar em vós ingratidão.
Existir é Ser Possível Haver Ser
Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
Perante esta única realidade terrível — a de haver uma realidade,
Perante este horrível ser que é haver ser,
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
— Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto constroem, desfazem ou se constrói ou desfaz através deles,
Se empequena!
Não, não se empequena… se transforma em outra coisa —
Numa só coisa tremenda e negra e impossível,
Urna coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino
—Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino,
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas,
De todas as vidas, abstratas ou concretas,
Eternas ou contingentes,
Verdadeiras ou falsas!
Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,
Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar por que é um tudo,
Não sintas pena de ti próprio. Apenas os burros o fazem.
Até que um Dia…
Meus versos eram rosas, lírios, heras,
borboletas, regatos, cotovias
cantando suas doces melodias,
anjos, sereias, ninfas e quimeras.Meus versos eram pombas entre as feras
e, na festa das horas e dos dias,
ia dançando penas e alegrias
e o ano tinha quatro primaveras.E a festa continua… é também festa
o cardo e a urze, o tojo, a murta, a giesta,
a chuva no beiral, o vento Norte,o gosto a mar, a lágrimas, a sal,
até que um dia a vida, a bem ou mal,
exausta de cantar me empreste à morte.
Em leito de penas
não se alcança a fama nem sobre as cobertas;
Quem a vida consome sem a fama,
não deixa de si nenhum vestígio sobre a terra,
qual fumo no ar e espuma na água.
Ditosos a quem Acena
MARINHA
Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena…
Eu sofro sem pena a vida.Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar…E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.
A Praça
A praça da Figueira de manhã,
Quando o dia é de sol (como acontece
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora seja uma memória vã.Há tanta coisa mais interessante
Que aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo aquilo, mesmo aqui … Sei eu
Por que o amo? Não importa. Adiante …Isto de sensações só vale a pena
Se a gente se não põe a olhar para elas.
Nenhuma delas em mim serena…De resto, nada em mim é certo e está
De acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros ou as que não há.
Todos temos um lugar onde a vida se acerta. Cada mundo tem um centro. O meu lugar não é melhor do que o teu, não é mais importante. Os nossos lugares não podem ser comparados porque são demasiado íntimos. Onde existem, só nós os podemos ver. Há muitas camadas de invisível sobre as formas que todos distinguem. Não vale a pena explicarmos o nosso lugar, ninguém vai entendê-lo. As palavras não aguentam o peso dessa verdade, terra fértil que vem do passado mais remoto, nascente que se estende até ao futuro sem morte.
Jeito de Escrever
Não sei que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas…
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei que diga, não sei que pense.Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?
Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto – o jeito.
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago…
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas. Mortas!
E por mais não ter que relatar me cerro.
Expressão antiga, epistolar: me cerro.
Tão grato é o velho, inopinado e novo.
Me cerro!Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados,
solta a outra, de pena expectante.
Uma que agarra, a outra que espera…Ó ilusão!
E tudo acabou, acaba.
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?
Viola Azulada
Sempre que houver saco retiro a viola,
e ponho a cantoria no sereno
da noite, em serenata que se evola
em sons antigos, raros, que enveneno.Nos acordes do pinho, a mão que sola
repete a melodia no azul pleno
dessa paixão azul, de ontens e agoras,
azulando a saudade e seu terreno.Carlos Pena Filho pintou de azul
os seus sapatos por ser impossível
pintar de azul as ruas do seu rumo,e a trova azul que eu canto agora aqui
mundo afora vai na nuvem que assume
chover de azul os sonhos por aí.
Insiste no Benefício
Queixas-te de teres dado com um ingrato! Se é a primeira vez que isso te sucede bem podes agradecer à tua sorte… ou à tua prudência. Mas esta é uma questão em que a prudência apenas fará de ti um homem azedo, pois se pretenderes evitar o perigo da ingratidão nunca mais farás benefícios a ninguém. Quer dizer, para que os teus benefícios não sejam em vão, privas-te de fazê-los. A verdade é que é preferível proporcionar benefícios mesmo sem contrapartida do que renunciar a beneficiar os outros: há que voltar a semear, mesmo depois de uma má colheita! As sementeiras perdidas por uma prolongada estirilidade de um terreno pouco fértil podem ser compensadas pela abundância de uma única messe. Para encontrarmos um só homem grato vale bem a pena sujeitarmo-nos à ingratidão de muitos.
Ao distribuir benefícios ninguém tem a mão tão certeira que não se possa com frequência enganar: pois sejam em vão esses benefícios, desde que uma ou outra vez sejam bem aplicados! Não é um naufrágio que põe termo à navegação, como não é a presença de um falido que impede o usurário de montar banca no foro. Em breve a nossa vida se transformará num torpor inutilmente ocioso se pretendermos eximir-nos à mínima contrariedade.
Ciumento: indevidamente preocupado com a preservação daquilo que só pode ser perdido se não valer a pena ser mantido.
Ser incondicional é fazer as coisas por nós, mas de forma que os outros possam usufruir delas sem que precisemos que depois nos compensem, reconheçam ou validem o que quer que seja. Fazemos por nós, porque nos apetece e, quando assim é, não existem cobranças, expectativas nem falsas ideias de que não vale a pena. Vale sempre a pena quando temos vontade.
Triste Padeço
Aves que o ar discorrei,
No vôo as asas batendo,
E por vossas penas conta
Às minhas meu sentimento.Compadecidas ouvi
De minha dor os excessos,
Mas em dizer que é saudade,
Digo o que posso dizer-vos.
Triste padeço, e ausente
Os golpes dos meus receios
Nas batalhas da distância,
Nos desafios do tempo.Nas violências, do que choro,
Dos alívios desespero,
Que não adormece a queixa,
Quando a desperta o desvelo.Esmoreceu a esperança
Nas dilações do desejo
Prognosticando a ruína
Frenético o pensamento.Se meu mal são sintomas,
Mortais ausências, e zelos,
Era o remédio esquecer-me,
Se em mim houvera esquecimento.Mas se faz no meu cuidado
Operações o veneno,
Viva de senti-lo quem,
Não morre de padecê-lo.Já que morro, ingrata sorte,
Às mãos da tua porfia,
Deixa-me inquirir um dia
A causa da minha morte:Se amor com impulso forte
Me rendeu, como me aparta
Do bem, que na alma retrata
Minha doce saudade,
Sou Lúcido
Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar…).Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
‘As normas reais ou sentimentais da vida –
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.
As Verdadeiras Necessidades não Têm Gostos
Nenhum conselho me parece mais útil para te dar do que este (e que nunca é demais repetir!): limita sempre tudo aos desejos naturais que tu podes satisfazer com pouca ou nenhuma despesa, evitando, contudo, confundir vícios com desejos. Porventura te interessa saber em que tipo de mesa, em que baixela de prata te é servida a refeição, ou se os escravos te servem com bom ritmo e solicitude? A natureza só necessita de uma coisa: a comida. (…) A fome dispensa pretensões, apenas reclama ser saciada, sem cuidar grandemente com quê. O triste prazer da gula vive atormentado na ânsia de continuar com vontade de comer mesmo quando saciado, de buscar o modo como atulhar, e não apenas encher o estômago, de achar maneira de excitar a sede extinta logo à primeira golada! Tem, por isso toda a razão Horácio quando diz que a sede não se interessa pela espécie de copo ou pela elegância da mão que o serve.
Se achas que têm para ti muita importância os cabelos encaracolados do escravo, ou a transparência do copo que te põe à frente, é porque não estás com sede. Entre outros benefícios que devemos à natureza conta-se este,