Como InĂștil Taça Cheia
Como inĂștil taça cheia
Que ninguém ergue da mesa,
Transborda de dor alheia
Meu coração sem tristeza.Sonhos de mågoa figura
SĂł para Ter que sentir
E assim nĂŁo tem a amargura
Que se temeu a fingir.Ficção num palco sem tåbuas
Vestida de papel seda
Mima uma dança de mågoas
Para que nada suceda.
Passagens sobre InĂșteis
383 resultadosO Que Procuro na Literatura
Que Ă© que eu procuro na literatura? Que Ă© que me arrasta para este combate interminĂĄvel e sempre votado ao fracasso? Como Ă© imbecil pensar-se que se escreve para se «ter nome» e as vantagens que nisso vĂȘm. Espera-se decerto sempre fazer melhor, mas sĂł porque sempre se falhou. Assim se sabe tambĂ©m que se vai falhar de novo. NĂŁo se escreve para ninguĂ©m, o problema decide-se apenas entre nĂłs e nĂłs. Mas hĂĄ um lugar inatingĂvel e cada nova tentativa Ă© uma tentativa para o alcançar.
O desejo que nos anima Ă© o de fixar, segurar pela palavra o que entrevemos e se nos furta. Julgamos Ă s vezes que o atingimos, mas logo se sabe que nĂŁo. Miragem perene de uma presença luminosa, de um absoluto de estarmos inundados dessa evidĂȘncia, encantamento que nos deslumbra no instante e nesse instante se dissolve.
O que me arrasta nesta luta sem fim é o aceno de uma plenitude de ser, a integração perfeita do que sou no milagre que me entreluz, a transfiguração de mim e do mundo no que fulgura e vai morrer.
RecaĂdo de cada vez no mais baixo, na grossa naturalidade de que sou feito,
Lisbon Revisited (1926)
Nada me prende a nada.
Quero cinqĂŒenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angĂșstia de fome de carne
O que nĂŁo sei que seja –
Definidamente pelo indefinido…
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.Fecharam-me todas as portas abstratas e necessĂĄrias.
Correram cortinas de todas as hipĂłteses que eu poderia ver da rua.
NĂŁo hĂĄ na travessa achada o nĂșmero da porta que me deram.Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
AtĂ© a vida sĂł desejada me farta – atĂ© essa vida…Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
NĂŁo sei que destino ou futuro compete Ă minha angĂșstia sem leme;
NĂŁo sei que ilhas do sul impossĂvel aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura me darĂŁo ao menos um verso.NĂŁo, nĂŁo sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma…
E, no fundo do meu espĂrito,
Pilotagem
E os meus olhos rasgarĂŁo a noite;
E a chuva que vier ferir-me nas vidraças
CompreenderĂĄ, entĂŁo, a sua inutilidade;E todos os sinos que alimentavam insĂłnias
hĂŁo-de repetir as horas mortas
sĂł para os ouvidos da torre;E os outros ruĂdos abafar-se-ĂŁo no manto negro da noite;
E a mĂŁo alva que me apontava os nortes
e ficou debruçada no postigo
amortalhada pela neve
reviverå de novo;E os meus braços se erguerão transfigurados
para o abraço virgem dos teus braços
que andava perdido, sem dar fé deste seu reino;E todas as luzes que tresnoitaram os homens
apagar-se-ĂŁo;E o silĂȘncio virĂĄ cheio de promessas
que nĂŁo se cansaram na viagem;E todos os povos de Babel
com as riquezas que hĂĄ no mundo
virĂŁo festejar a paz em minha honra;E os caminhos se abrirĂŁo
para os homens que seguirem de mĂŁos dadas:O sangue derramado de Cristo
terå finalmente significação,
e da inĂștil cruz do martĂrio
se erguerĂĄ o pendĂŁo da vitĂłria;
As leis inĂșteis, enfraquecem as leis necessĂĄrias.
A Invenção do Amor
Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares Ă porta dos edifĂcios pĂșblicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anĂșncios de apa-
relhos de rĂĄdio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no åtrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amorEm letras enormes do tamanho
do medo da solidĂŁo da angĂșstia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carĂĄcter de urgĂȘncia
deixando cair dos ombros o fardo incĂłmodo da monotonia
quotidianaUm homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inĂșteis
Apenas o silĂȘncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperadoNĂŁo saĂram de mĂŁos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativoUm homem uma mulher um cartaz de denĂșncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rĂĄdio jĂĄ falou A TV anuncia
iminente a captura A polĂcia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
Ă© possĂvel que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
Ă preciso encontrĂĄ-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeiaHå pesadas sançÔes para os que auxiliarem os fugitivos
(…)
Sabia que era inĂștil resolver sobre o prĂłprio destino.
Ă inĂștil tentar reformar o que nĂŁo tem forma, como certas situaçÔes polĂticas e sociais.
Os leĂ”es tĂȘm uma grande força, mas esta ser-lhes-ia inĂștil se a natureza lhes nĂŁo tivesse dado olhos.
Acordar
Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar atravĂ©s da vigĂlia e do sono.Toda a manhĂŁ que raia, raia sempre no mesmo lugar,
NĂŁo hĂĄ manhĂŁs sobre cidades, ou manhĂŁs sobre o campo.
Ă hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares sĂŁo o mesmo lugar, todas as terras sĂŁo a mesma,
E Ă© eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.Uma espiritualidade feita com a nossa prĂłpria carne,
Um alĂvio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
SĂŁo os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vĂŁo leste-oeste,
SejaA mulher que chora baixinho
Entre o ruĂdo da multidĂŁo em vivas…
NĂłs Ă© Que NĂŁo Estamos Prontos
NĂłs Ă© que nĂŁo estamos prontos. Os objectos da nossa felicidade existem hĂĄ dias, anos, talvez sĂ©culos; esperam que a luz se faça em nossos olhos para os vermos, e que o vigor chegue aos nossos braços para os agarrarmos. Eles esperam e espantam-se de hĂĄ tanto tempo ali estarem inĂșteis. Sofremos, sofremos de cada vez que duvidamos de alguĂ©m ou de qualquer coisa, mas o nosso sofrimento transforma-se em alegria logo que apreendemos, nessa pessoa ou nessa coisa, a beleza imortal que nos fazia amĂĄ-la.
Um inĂștil. Mas Ă© tĂŁo justo sĂȘ-lo!
Soneto Da Mulher InĂștil
De tanta graça e de leveza tanta
Que quando sobre mim, como a teu jeito
Eu tĂŁo de leve sinto-te no peito
Que o meu prĂłprio suspiro te levanta.To contra quem me esbato liquefeito
Rocha branca! brancura que me espanta
Brancos seios azuis, nĂvea garganta
Branco pĂĄssaro fiel com que me deito.Mulher inĂștil, quando nas noturnas
CelebraçÔes, nĂĄufrago em teus delĂrios
Tenho-te toda, branca, envolta em brumasSĂŁo teus seios tĂŁo tristes como urnas
SĂŁo teus braços tĂŁo finos como lĂrios
Ă teu corpo tĂŁo leve como plumas.
As Canseiras Destinam-se a Satisfazer os Luxos
Nos dias de hoje, quem consideras tu como sĂĄbio? O tĂ©cnico que sabe montar repuxos de ĂĄgua perfumada atravĂ©s de canalizaçÔes invisĂveis, o que Ă© capaz de encher ou esvaziar num instante os canais artificiais, o que sabe dar diversas disposiçÔes aos caixotĂ”es mĂłveis do tecto de modo a que o salĂŁo de banquetes vĂĄ mudando de decoração Ă medida que vĂŁo surgindo os vĂĄrios pratos? Ou antes aquele que demonstra, a si mesmo e aos outros, que a natureza nos nĂŁo impĂ”e nada que seja duro e difĂcil, que para termos uma casa nĂŁo carecemos de marmoristas ou de marceneiros, que para nos vestirmos nĂŁo dependemos do comĂ©rcio da seda, em suma, que para dispormos do essencial Ă vida quotidiana nos basta aquilo que a terra nos apresenta Ă superfĂcie? Se a humanidade se dispusesse a seguir os conselhos de um tal homem imediatamente perceberia que tĂŁo inĂștil Ă© o cozinheiro como o soldado!
Os antigos, esses homens que satisfaziam sem quaisquer excessos as suas necessidades fĂsicas, eram de facto sĂĄbios, ou pelo menos muito prĂłximo de o serem. Para se obter o indispensĂĄvel nĂŁo Ă© preciso muito esforço; as canseiras destinam-se a satisfazer os luxos. Tu podes dispensar todos os tĂ©cnicos: basta que sigas a natureza!
Homens Exageradamente Subtis
Os homens exageradamente subtis raro sĂŁo grandes homens, e as suas pesquisas sĂŁo, na maior parte dos casos, tĂŁo inĂșteis como requintadas. Afastam-se cada vez mais da vida prĂĄtica, de que se deveriam aproximar. Assim como os mestres de dança ou de esgrima nĂŁo começam por ensinar a anatomia dos braços e das pernas, tambĂ©m uma filosofia sĂŁ e utilizĂĄvel deve partir de muito mais alto do que todas as suas especulaçÔes. «Deve pĂŽr-se o pĂ© assim para se nĂŁo cair» e «é necessĂĄrio acreditar nisto pois seria absurdo nĂŁo acreditar», constituem bases muito boas.
As pessoas que quiserem ir mais longe podem fazĂȘ-lo, mas sem pensarem que fazem algo de grande, porque se tudo resultar, nada mais encontrarĂŁo, no fim de contas, do que aquilo que o homem razoĂĄvel sabia hĂĄ muito.
O homem que faz uma nova demonstração do dĂ©cimo segundo teorema de Euclides merece ser chamado engenhoso, mas nem por isso contribuirĂĄ mais para o alargamento das fronteiras da ciĂȘncia do que se nĂŁo tivesse feito tal invenção. Mas nunca, por certo, chegareis a convencer o cĂ©ptico, porque que argumento deste mundo serĂĄ capaz de convencer um homem capaz de acreditar em absurdidades? E alguĂ©m que quer ser convencido merecerĂĄ ser refutado?
Sei que metade da publicidade que faço Ă© inĂștil. Mas nĂŁo sei qual Ă© a metade inĂștil.
O melhor governo Ă© aquele em que hĂĄ o menor nĂșmero de homens inĂșteis.
Sentirmo-nos inĂșteis ainda Ă© pior do que nos sentirmos culpados.
Sem instrução, as melhores leis tornam-se inĂșteis.
Nunca Estamos em Nós, Estamos Sempre Além
Os que acusam os homens de ir sempre perseguindo boquiabertos as coisas futuras, e ensinam a nos apossarmos dos bens actuais e a sossegarmos neles por nĂŁo termos nenhum domĂnio sobre o que estĂĄ para vir, atĂ© bem menos do que o temos sobre o que passou, referem-se ao mais comum dos erros humanos – se Ă© que ousam chamar de erro algo que a prĂłpria natureza nos encaminha para servirmos Ă continuação da sua obra, imprimindo-nos, como muitas outras, essa fantasia enganadora, mais ciosa da nossa acção que do nosso saber. Nunca estamos em nĂłs, estamos sempre alĂ©m. O temor, o desejo, a esperança lançam-nos para o futuro e roubam-nos a percepção e o exame do que Ă©, para entreter-nos com o que serĂĄ, atĂ© mesmo quando nĂŁo existirmos mais. Infeliz Ă© o espĂrito que se preocupa com o futuro (SĂ©neca).
Este grande preceito é frequentemente citado em Platão: Faz o teu feito e conhece-te a ti mesmo. Cada um desses dois membros engloba em geral todo o nosso dever, e igualmente engloba o seu companheiro. Quem tivesse de fazer o seu feito veria que a sua primeira lição é conhecer o que é e o que lhe é próprio.