Citação de

Acreditei que Podia Dar-te um CĂ©u para Brincares

Filho. Gostava que houvesse uma aragem qualquer que me explicasse esse teu sorriso e outra que te explicasse, sem te magoar, o meu silĂȘncio. Gostava de aprender o trejeito dos teus lĂĄbios, a maneira dos teus olhos, e to lembrar quando tivesses a minha idade. Fui um dia a tua inocĂȘncia. E dela ficou-me a grande inocĂȘncia de acreditar.
Acreditei que podia dar-te um cĂ©u para brincares e que a vida seria o que nĂłs quisĂ©ssemos. Assim. Bastaria querermos, esforçarmo-nos muito, trabalharmos, e terĂ­amos entĂŁo o que desejĂĄssemos. NĂŁo digo coisas majestosas, roupas bonitas ou charretes, mas comida, comida gostosa e bem temperada, e um cavalo de cartĂŁo novo, se por acaso esquecesses o teu no quintal numa noite de chuva. Acreditei que a felicidade dos teus olhos a sorrir podia voltar aos olhos da tua mĂŁe, aos meus e perdurar intocada nos teus. Acreditei em tantas coisas. Sabes, aproximo-me da vila e o que me espera Ă© morrer um pouco mais. Preferia que nĂŁo o soubesses, mas infelizmente nem isso posso esconder-te, porque um dia, quando te contarem a histĂłria da tua vida, dir-te-ĂŁo que numa noite de estrelas, o teu pai foi Ă  vila e levou uma sova; dir-te-ĂŁo que havia poucos dias, no campo, tinha levado outra sova e que, com o peito enrolado numa ligadura, seguia o seu caminho sabendo o que o esperava. NĂŁo vĂŁo dizer-te que, durante o caminho, pensou em ti, disse-te segredos. NĂŁo vĂŁo dizer-te, porque o nĂŁo podem entender, que o teu pai avançava por ti, para que te sobrasse uma rĂ©stia daquilo que esse teu pai sonhou dar-te, para te proteger um pouco do que Ă© mais forte, sempre muito mais forte. Dir-te-ĂŁo que o teu pai levou uma sova e que levou outra sova, e terĂĄs vergonha de mim. Os anos encarregar-se-ĂŁo de apagar tudo o que julguei ser certo e nunca foi, para ficar apenas o que aconteceu e, por fim, atĂ© isso ser tambĂ©m esquecido. Os anos apagar-me-ĂŁo, vais ver. E isso nĂŁo me entristece, porque sempre soube que seria assim. Mas, Ă© preciso dizer-te, nunca te quis deixar sozinho. Se o fiz, nĂŁo o quis fazer. Alegre, pequeno filho bonito, livre. Entrei agora na vila. Olham-me as pessoas com boas noites arrastados. Sei que Ă©s muito novo para entender tudo o que te quero dizer, mas ao menos a palavra pai, de tudo isto, quero que recordes ao menos a palavra pai. Quero que me olhes nos olhos, mesmo quando jĂĄ tiver desaparecido hĂĄ muito e partilhe com’ a terra a sua solidĂŁo; quero que me aprendas e descubras o que pensei para ti nesta noite. Estou no terreiro. Entro na venda. Num lado do balcĂŁo, o sorriso do demĂłnio. No outro, o gigante dobrado com a cabeça no tecto.