Disputas Empobrecedoras
As disputas deviam ser regulamentadas e punidas como outros crimes verbais. Que defeitos nĂŁo suscitam e acumulam em nĂłs, reguladas e governadas como sĂŁo pela cĂłlera! Começamos por ser inimigos das razões e acabamos por o ser dos homens. SĂł aprendemos a discutir para contraditar, e, Ă força de se contraditar e ser-se contraditado, vem a acontecer que o fruto do discutir Ă© perder e aniquilar-se a verdade. Assim, PlatĂŁo, na RepĂşblica, proĂbe o seu exercĂcio aos espĂritos ineptos e mal formados.
Porque nos havemos de pôr a caminho, para descobrir a verdade, com quem não tem passo nem andamento que sirvam? Não se prejudica o assunto quando o deixamos para procurar o meio de o tratarmos; não falo dos meios escolásticos e artificiais, falo dos meios naturais, dum entendimento são. Que sucederá por fim? Cada um puxa para o seu lado; perdem de vista o essencial, põem-no de parte na confusão do acessório.
No fim de uma hora de tormenta já não sabem o que procuram; um está em cima, outro em baixo, outro para o lado. Uns demoram-se com as palavras e com as comparações; outros não entendem o que se lhes objecta, tanto se entusiasmam: só pensam neles,
Textos sobre Crimes de Michel de Montaigne
2 resultadosA Hipocrisia do Ser
Para que servem esses pĂncaros elevados da filosofia, em cima dos quais nenhum ser humano se pode colocar, e essas regras que excedem a nossa prática e as nossas forças? Vejo frequentes vezes proporem-nos modelos de vida que nem quem os propõe nem os seus auditores tĂŞm alguma esperança de seguir ou, o que Ă© pior, desejo de o fazer. Da mesma folha de papel onde acabou de escrever uma sentença de condenação de um adultĂ©rio, o juiz rasga um pedaço para enviar um bilhetinho amoroso Ă mulher de um colega. Aquela com quem acabais de ilicitamente dar uma cambalhota, pouco depois e na vossa prĂłpria presença, bradará contra uma similar transgressĂŁo de uma sua amiga com mais severidade que o faria PĂłrcia.
E há quem condene homens Ă morte por crimes que nem sequer considera transgressões. Quando jovem, vi um gentil-homem apresentar ao povo, com uma mĂŁo, versos de notável beleza e licenciosidade, e com outra, a mais belicosa reforma teolĂłgica de que o mundo, de há muito Ă quela parte, teve notĂcia.
Assim vĂŁo os homens. Deixa-se que as leis e os preceitos sigam o seu caminho: nĂłs tomamos outro, nĂŁo sĂł por desregramento de costumes, mas tambĂ©m frequentemente por termos opiniões e juĂzos que lhes sĂŁo contrários.