Textos sobre Crises de Fernando Pessoa

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Textos de crises de Fernando Pessoa. Leia este e outros textos de Fernando Pessoa em Poetris.

As Pessoas Riam-se de Mim

A minha susceptibilidade a certo tipo de sustos (medo) era grande. Na rua, um homem caminhando na minha direcção, isto é, na direcção contrária, tirou da algibeira um lenço à minha frente; comecei de imediato a pensar, inconscientemente, acho, que estava a tirar uma arma ou um revólver.
A minha vista curta — nem sempre, mas excessivamente no que respeita aos traços das pessoas, aos gestos — afectava o meu cérebro desequilibrado. A minha imaginação interpretava mal o carácter dos seus olhares. Distorcia, não sabia explicar porquê, a intenção e o significado dos seus gestos. O meu próprio sentido de audição era débil; aplicava a mim próprio, retorcendo-as, as palavras que captava. Via em cada palavra um termo destinado a ofender-me, em cada frase, mal apanhada, a sombra e o vislumbre de um insulto.
As pessoas na rua riam-se: riam-se de mim. A minha vista débil não me deixava destruir esta ilusão. Não me atrevia a pôr os óculos que tinha no bolso, pois temia que as minhas desconfianças se revelassem fundadas.
Ansiava por ter uma grande auto-estima, para que a minha pessoa me fizesse esquecer de mim próprio. Desejava, oh, como desejava! — o impulso de me dedicar aos outros para que eles me fizessem esquecer de mim.

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A Nossa Crise Mental

Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos – político, moral e intelectual?
A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico. Todo o povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este ele mesmo têm uma substância idêntica; manifestam-se, porém, diferentemente. A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só colectivamente é que o povo não é colectivo.
O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita — como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova — o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia.

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