Um Ăšnico Poema
Quando olho para esse livro («Poesia Toda»), vejo que nĂŁo fabriquei ou instruĂ ou afeiçoei objectos — estas palavras nĂŁo supõem o mesmo modo de fazer—, vejo que escrevi apenas um poema, um poema em poemas; durante a vida inteira brandi em todas as direcções o mesmo aparelho, a mesma arma furiosa. Fui um inocente, porque sĂł se consegue isso com inocĂŞncia. E se a inocĂŞncia Ă© uma condição insubstituĂvel de escândalo, uma transparente e mobilizadora familiaridade com a terra, constitui tambĂ©m um revĂ©s: pois há uma altura em que se sabe: as coisas ludibriaram-nos, ludibriámo-nos nas coisas; a inocĂŞncia deveria ter-nos oferecido uma vida estupenda, um tumulto: o ar em torno proporcionado como pura levitação; ver, tocar; os mais simples actos e factos prĂłximos como instantâneo e completo conhecimento. Era assim, foi assim, mas a dor, as vozes demonĂacas, o abismo junto Ă dança, a noite que se vai insinuando a toda a altura e largura da luz, tudo Isso invade a inocĂŞncia — e entĂŁo já nĂŁo sabemos nada, por exemplo: será inocente a nossa inocĂŞncia? A inocĂŞncia Ă© um estado clandestino na ditadura do mundo; tem se der astuta, tem de recorrer a todas as torpezas para lutar e escapar,
Textos sobre Espécies de Herberto Helder
4 resultadosO Mundo Transformado em Poder da Palavra
O poema Ă© um objecto carregado de poderes magnĂficos, terrĂficos: posto no sĂtio certo, no instante certo, segundo a regra certa, promove uma desordem e uma ordem que situam o mundo num ponto extremo: o mundo acaba e começa. Aliás nĂŁo Ă© exactamente um objecto, o poema, mas um utensĂlio: de fora parece um objecto, tem as suas qualidades tangĂveis, nĂŁo Ă© porĂ©m nada para ser visto mas para manejar. Manejamo-lo. Acção, temos aquela ferramenta. A acção Ă© a nossa pergunta Ă realidade: e a resposta, encontramo-la aĂ: na repentina desordem luminosa em volta, na ordem da acção respondida por uma espĂ©cie de motim, um deslocamento de tudo: o mundo torna-se um facto novo no poema, por virtude do poema — uma realidade nova. Quando apenas se diz que o poema Ă© um objecto, confunde-se, simplifica-se; parece realmente um objecto, sim, mas porque o mundo, pela acção dessa forma cheia de poderes, se encontra nela inscrito: Ă© registo e resultado dos poderes. E temos essa forma: a forma que vemos, ei-la: respira pulsa move-se — Ă© o mundo transformado em poder da palavra, em palavra objectiva inventada em irrealidade objectiva. Se dizemos simplesmente: Ă© um objecto — inserimos no elenco de emblemas que nos rodeia um equĂvoco melindroso,
O Nascimento de um Poema
Escreve-se um poema devido à suspeita de que enquanto o escrevemos algo vai acontecer, uma coisa formidável, algo que nos transformará, que transformará tudo. Como na infância, quando se fica à porta de um quarto obscuro e vazio. Fica-se durante um minuto uma brisa levanta-se nos confins da obscuridade: um redemoinho no ar, uma luz, uma iluminação talvez? Estamos prontos para o assentimento. Outro minuto, cinco, dez, ali, diante do anúncio suspenso e ameaçador: não acontece nada. Poder-se-ia esperar um dia inteiro, dias seguidos. As vezes pára-se no meio de um jardim ou de um parque ou de uma avenida deserta. São variantes do quarto. Acontece o mesmo, quero dizer: não acontece na¬da. A suspeita apenas de que nos aguarda uma espécie de graça reticente, um dom reticente. Ou contempla-se um rosto, alguém que se ama, um ser imediato; ou então um rosto desconhecido, defendido. Pensamos: é uma vida nova, uma força nova e profunda, é uma paisagem misteriosa, profunda e nova que se relaciona intimamente connosco: vai revelar-se. E a outra pessoa olha para nós perdida nas perspectivas inquietas da nossa contemplação. E recomeça-se. O mesmo, sempre. Nada. Por isso surpreendeu-me a, diga¬mos, coerência vertical do volume, e o seu comprimento de onda,
O PrestĂgio de um Poeta
O prestĂgio que possa ter alcançado (prestĂgio equivoco no qual se integra a malquerença de alguma gente, que aceito com satisfação) nĂŁo poderia constituir uma poltrona. O prestĂgio Ă© uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o ĂŞxito Ă© prejuĂzo. Deve-se estar disponĂvel para decepcionar os que confiaram em nĂłs. Decepcionar Ă© garantir o movimento. A confiança dos outros diz-lhes respeito. A nĂłs mesmos diz respeito outra espĂ©cie de confiança. A de que somos insubstituĂveis na nossa aventura e de que ninguĂ©m a fará por nĂłs. De que ela se fará Ă margem da confiança alheia.