O Acto Poético
O acto poĂ©tico Ă© o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo do conhecimento, que Ă© tambĂ©m fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, Ă© a sua moral. E nĂŁo há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem Ă tona Ă© tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espĂrito humano atenta mais facilmente nas diferenças do que nas semelhanças, esquecendo-se, e Ă© Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tĂŁo fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do prĂłprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer sĂŁo capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa atĂ© quando nos diz o silĂŞncio, pois esse ser sedento de ser, que Ă© o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura Ă© uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausĂŞncia, plenitude e carĂŞncia.
Textos sobre Humanos de Eugénio de Andrade
3 resultadosFragmento do Homem
Que tempo é o nosso? Há quem diga que é um tempo a que falta amor. Convenhamos que é, pelo menos, um tempo em que tudo o que era nobre foi degradado, convertido em mercadoria. A obsessão do lucro foi transformando o homem num objecto com preço marcado. Estrangeiro a si próprio, surdo ao apelo do sangue, asfixiando a alma por todos os meios ao seu alcance, o que vem à tona é o mais abominável dos simulacros. Toda a arte moderna nos dá conta dessa catástrofe: o desencontro do homem com o homem. A sua grandeza reside nessa denúncia; a sua dignidade, em não pactuar com a mentira; a sua coragem, em arrancar máscaras e máscaras.
E poderia ser de outro modo? Num tempo em que todo o pensamento dogmático Ă© mais do que suspeito, em que todas as morais se esbarrondam por alheias à «sabedoria» do corpo, em que o privilĂ©gio de uns poucos Ă© utilizado implacavelmente para transformar o indivĂduo em «cadáver adiado que procria», como poderia a arte deixar de reflectir uma tal situação, se cada palavra, cada ritmo, cada cor, onde espĂrito e sangue ardem no mesmo fogo, estĂŁo arraigados no prĂłprio cerne da vida?
Em Louvor das Crianças
Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino Ă© o da infância. A esse paĂs inocente, donde se Ă© expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, Ă s vezes, poesia. Essa espĂ©cie de terra mĂtica Ă© habitada por seres de uma tĂŁo grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi Ă s crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o ParaĂso.
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue.
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que,