Os Olhos nĂŁo Permitem a Mentira
Serå através dos olhos que passarås aos teus filhos tudo o que souberes.
Pouco valimento serå dado às liçÔes que, em vã convicção, te atrevas a dedicar-lhes.
NĂŁo poderĂĄs ensinar mais do que sabes;
aquilo que souberes serĂĄ aquilo em que acreditares;
aquilo em que acreditares existirĂĄ dentro de ti,
terå a forma de um mistério que nunca entenderås completamente
e, no entanto, os teus filhos irĂŁo recebĂȘ-lo, de modo puro e inalterado, atravĂ©s dos teus olhos.
Queiras ou nĂŁo, assim serĂĄ.
Os olhos nĂŁo permitem a mentira.
Textos sobre MistĂ©rio de JosĂ© LuĂs Peixoto
4 resultadosA Mulher de Negro
Os sons da floresta, as ĂĄrvores, a bicicleta e, ao longe, o silĂȘncio imĂłvel de um vulto negro. Aproximei-me e era uma mulher vestida de negro. Um xaile negro sobre os ombros. Um lenço negro sobre a cabeça. O som dos pneus da bicicleta a pararem, o som de amassarem folhas hĂșmidas e de fazerem estalar ramos. Os meus pĂ©s a pousarem no chĂŁo. Os olhos da mulher entre o negro. Os olhos pequenos da mulher. O seu rosto branco. Vimo-nos como se nos encontrĂĄssemos, como se nos tivĂ©ssemos perdido havia muito tempo e nos encontrĂĄssemos. O tempo deixou de existir. O silĂȘncio deixou de existir. Pousei a bicicleta no chĂŁo para caminhar na direcção da mulher. Era atraĂdo por segredos. Durante os meus passos, a mulher estendeu-me a mĂŁo. A sua mĂŁo era muito velha. A palma da sua mĂŁo tinha linhas que eram o mapa de uma vida inteira, uma vida com todos os seus enganos, com todos os seus erros, com todas as suas tentativas. Os seus olhos de pedra. Senti os ossos da sua mĂŁo a envolverem os meus dedos. NĂŁo me puxou, mas eu aproximei o meu corpo do seu. Senti a sua respiração no meu pescoço.
Em Tudo o que Fiz Bem Pus um Pouco de Ti
Eis o teu rosto iluminado por esta hora de maio.
Ao filho autĂȘntico, basta fechar os olhos para encontrar o rosto da sua mĂŁe.
A fronteira que separa o dentro do fora Ă© vaga de propĂłsito, mais exata Ă© a fronteira dos meses.
MĂŁe, as tardes de maio nĂŁo sĂŁo um acaso.
Pus um pouco de ti naquilo que fiz de mais importante.
Onde existir terra estås tu, dås força e horizonte.
O ar não permitiria respiração se não te contivesse.
A ĂĄgua nĂŁo seria capaz de alimentar sem a tua presença lĂquida.
O fogo nĂŁo chegaria a acender se nĂŁo incluĂsse o teu mistĂ©rio no seu mistĂ©rio.
Estavas jĂĄ no primeiro inĂcio do firmamento, nesse rugido que encheu a superfĂcie do cĂ©u e da terra, que rasgou as trevas; da mesma maneira, estarĂĄs no seu Ășltimo fim.
EstĂĄs antes e depois.
EstĂĄs na lenta passagem da eternidade.
MĂŁe, atravessas a vida e a morte como a verdade atravessa o tempo, como os nomes atravessam aquilo que nomeiam.
Sabes que criei tudo o que hå e sabes também que não criei tudo o que poderia haver.
Entre as faltas evidentes,
Estamos Atados, Filho
Levar-vos-ei sempre comigo. Olho de frente o Ășltimo raio de sol antes de o sol desaparecer. Penso: um homem Ă© um dia, um homem Ă© o sol durante um dia. E Ă© preciso continuar. Avançam os meus pĂ©s sobre a terra. Filho, dormes ainda, e quis mostrar-te o sol-pĂŽr. Quis mostrar-te a terra, ensinar-te a cor da terra por dentro, porque quem conhece a cor da terra por dentro conhece o mundo e os homens. Filho, o sol desapareceu agora e deixou uma aura vermelha de sangue Ă volta do cabeço onde entrou, e quis ensinar-te que amanhĂŁ estarĂĄ calor. Quis ensinar-te que, se nĂŁo vires as estrelas de noite, espera chuva no dia seguinte. E saberes isto Ă© saberes tudo. SĂŁo estas as poucas coisas que nos dĂŁo a saber. O resto, filho, sĂŁo mistĂ©rios sem explicação. O resto sĂŁo punhais apontados dentro do nevoeiro. O resto sĂŁo punhais que vemos aproximarem-se do nosso peito, e estamos atados, filho.