O relâmpago antecipa-se ao raio, a graça precede a modéstia
O relâmpago antecipa-se ao raio, a graça precede a modéstia.
Textos sobre Raios
42 resultadosO Que Esconde o Admirável
São raras as acções, que sejam ilustres por si mesmas; dificilmente haverá algumas, que não deixem conhecer que vêm do homem. As mais das cousas admiram-se, porque se não conhecem; e juntamente porque nelas há um rico véu, que as cobre: vemos um exterior brilhante, que muitas vezes serve de esconder um abismo horrendo; a mesma luz arma-se de raios, para que não possa examinar-se de onde lhe vêm os resplandores; a formusura em tudo nos atrai; a nossa admiração não pode passar além; donde a encontra, aí fica suspensa, e cega.
Isto sucede nas acções dos homens; as mais sublimes, parece que nos cegam, e suspendem; e talvez seriam detestáveis, se lhes não ignorássemos as causas. Tudo o que tem ar de grande prende a nossa imaginação de sorte, que não fica livre para discorrer na cousa, senão no estado de grandeza em que a vê, e não para indagar de onde veio, nem como veio.
Todos Nós Hoje Nos Desabituamos do Trabalho de Verificar
Todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de verificar. É com impressões fluídas que formamos as nossas maciças conclusões. Para julgar em Política o facto mais complexo, largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Para apreciar em Literatura o livro mais profundo, atulhado de ideias novas, que o amor de extensos anos fortemente encadeou—apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo escurecedor do charuto. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos—«Este é uma besta! Aquele é um maroto!» Para proclamar—«É um génio!» ou «É um santo!» of erecemos uma resistência mais considerada. Mas ainda assim, quando uma boa digestão ou a macia luz dum céu de Maio nos inclinam à benevolência, também concedemos bizarramente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa ou a auréola, e aí empurramos para a popularidade um maganão enfeitado de louros ou nimbado de raios. Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há acção individual ou colectiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda E a opinião tem sempre,
O Problema em Amar
O problema em amar quem te ama é o de quem te ama te amar como tu amas quem te ama. E depois o encadeamento é simples: quem te ama quer-te presente por dentro dele a toda a hora, por todo o lado do teu lado; e tu queres quem te ama presente em ti a toda a hora, por todo o lado do teu lado. Mas os corpos – por mais que a alma não seja palpável também ela tem um corpo – têm um limite de dilatação. A partir de uma certa altura: pára. E já não alarga mais. E tu queres enfiar o espaço que quem ama ocupa em ti mesmo ao lado do espaço do que te amas. E não dá. Não dá para te amares como amas quem amas. E depois quem te ama como tu amas quem te ama vai querer fazer o mesmo contigo. E não dá. Os corpos – repito – têm um limite de dilatação. E chega uma altura em que uma parte de ti não cabe na parte toda de quem amas; e chega uma altura em que uma parte de quem amas não cabe na parte toda de ti.
Os Dias Zangados São Dias de Amor
Raios partam os dias zangados. Nada há que se possa fazer para fugir deles. Esperam por nós, como credores ajudados por juros injustificáveis, para nos cortarem a fatia do nosso coração que lhes cabe.
Não são como os dias tristes, que não conseguem habituar-se a uma realidade qualquer, que se revelou, sem querer, desiludindo-nos de uma ilusão que nós próprios inventámos, para mais facilmente podermos acreditar, falsamente, nela. Mas assemelham-se para mais bem nos poderem magoar. Depois. Quase ao mesmo tempo. Bem.
Quem não tem um dia zangado, em que ninguém ou nada corresponde ao que esperávamos? A felicidade é a excepção e o engano. Resulta mais de um esquecimento do que de uma lembrança.
Pouco há de certo neste mundo. São muitos os pobres, mas não são poucos os ricos. As pessoas do sexo masculino não se entendem nem com as pessoas do sexo masculino, nem com as do sexo feminino. As pessoas, sejam de que sexo e sexualidade forem, compreendem-se mal. Dão-se mal, por muito bem que se dêem. As mais apaixonadas umas pelas outras são as que menos bem aceitam as diferenças, as incompreensões, os dias zangados e as noites zangadas que apenas servem para nos relembrar que todos nós nascemos e morremos sozinhos.
Confiança Audaz
Há um momento na aprendizagem de cada homem em que este chega à convicção de que a inveja é ignorância; que a imitação é suicídio; que ele tem que se tomar a ele próprio tanto para melhor, tanto para pior, como a sua parcela; que embora o universo esteja cheio de coisas boas, nenhuma semente de milho nutritiva chegará a ele senão através da labuta que ele ofereça nesse lote de terreno que lhe foi dado para cultivar. O poder que reside nele é novo na natureza, e nenhum outro senão ele sabe o que é que pode fazer, e não o saberá até que o tente. Não é por nada que uma cara, um carácter, um facto, causa muito impressão nele, e outros não têm qualquer efeito. Esta escultura na memória não existe sem uma harmonia pré-estabelecida. O olho foi colocado onde um raio deve cair, de forma a testemunhar esse raio em particular. Nós apenas nos exprimimos pela metade, e temos vergonha da ideia divina que cada um de nós representa. Podemos ser de confiança e de motivações boas e proporcionais, e darmo-nos fielmente, mas Deus não terá o seu trabalho mais manifesto feito por cobardes. Um homem está seguro e tranquilo quando coloca todo o coração no seu trabalho ou outra actividade e faz o seu melhor de acordo consigo próprio;
Não Penses
Não penses. Que raio de mania essa de estares sempre a querer pensar. Pensar é trocar uma flor por um silogismo, um vivo por um morto. Pensar é não ver. Olha apenas, vê. Está um dia enorme de sol. Talvez que de noite, acabou-se, como diz o filósofo da ave de Minerva. Mas não agora. Há alegria bastante para se não pensar, que é coisa sempre triste. Olha, escuta. Nas passagens de nível, havia um aviso de «pare, escute, olhe» com vistas ao atropelo dos comboios. É o aviso que devia haver nestes dias magníficos de sol. Olha a luz. Escuta a alegria dos pássaros. Não penses, que é sacrilégio.
A Memória da Leitura
Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido. Tudo quanto, ao que parecia, os enchia para os outros, e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: a brincadeira para a qual um amigo nos vinha buscar na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol incomodativos que nos obrigavam a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, as provisões para o lanche que nos obrigavam a levar e que deixávamos ao nosso lado no banco, sem lhes tocar, enquanto, sobre a nossa cabeça, o sol diminuía de intensidade no céu azul, o jantar que motivara o regresso a casa e durante o qual só pensávamos em nos levantarmos da mesa para acabar, imediatamente a seguir, o capítulo interrompido, tudo isto, que a leitura nos devia ter impedido de perceber como algo mais do que a falta de oportunidade, ela pelo contrário gravava em nós uma recordação de tal modo doce (de tal modo mais preciosa no nosso entendimento actual do que o que líamos então com amor) que, se ainda hoje nos acontece folhear esses livros de outrora,
Alarga os Teus Horizontes
Por que é que combateis? Dir-se-á, ao ver-vos,
Que o Universo acaba aonde chegam
Os muros da cidade, e nem há vida
Além da órbita onde as vossas giram,
E além do Fórum já não há mais mundo!Tal é o vosso ardor! tão cegos tendes
Os olhos de mirar a própria sombra,
Que dir-se-á, vendo a força, as energias
Da vossa vida toda, acumuladasSobre um só ponto, e a ânsia, o ardente vórtice,
Com que girais em torno de vós mesmos,
Que limitais a terra à vossa sombra…
Ou que a sombra vos torna a terra toda!
Dir-se-á que o oceano imenso e fundo e eterno,
Que Deus há dado aos homens, por que banhem
O corpo todo, e nadem à vontade,
E vaguem a sabor, com todo o rumo,
Com todo o norte e vento, vão e percam-se
De vista, no horizonte sem limites…
Dir-se-á que o mar da vida é gota d’água
Escassa, que nas mãos vos há caído,
De avara nuvem que fugiu, largando-a…
Tamanho é o ódio com que a uns e a outros
A disputais,
A Inveja não tem Passado
Ainda não tendes advertido, que a inveja faz grande diferença dos mortos aos vivos, e dos presentes aos passados? Os olhos da inveja são como os do Sacerdote Heli, dos quais diz o Texto sagrado, que não podiam ver a luz do Templo, senão depois que se apagava: Oculi ejus caligaverant, nec poterat videre lucernam Dei, antequam extingueretur. Enquanto as luzes são vivas, cada reflexo delas é um raio, que cega os olhos da inveja: porém depois que elas se apagaram, e muito mais se se metem largos anos em meio, então abre a inveja, como ave nocturna, os olhos; então vê o que não podia ver: então venera e celebra essas mesmas luzes, e levanta sobre as Estrelas seus resplendores. Por isso disse com grande juízo S. Zeno Veronense, que todo o invejoso é inimigo dos presentes, e amigo dos passados: In omnibus se inimicum praesentium servat, amicum vero pereuntium. Os mesmos que agora amam, e veneram tanto a Santo António, se viveram em seu tempo, o haviam de aborrecer e perseguir; e as mesmas maravilhas, que tanto celebram e encarecem, se foram obradas na sua Pátria, as haviam de escurecer e aniquilar.
A Fraqueza dos Nossos Sentidos
A fraqueza dos nossos sentidos impede-nos o gozar das cousas na sua simplicidade natural. Os elementos não são em si como nós os vemos: o ar, a água, e a terra a cada instante mudam, o fogo toma a qualidade da matéria que o produz, e tudo enfim se altera, e se empiora para ser proporcionado a nós. A virtude muitas vezes se acha com mistura de algum vício; no vício também se podem encontrar alguns raios de virtude; incapazes de um ser constante, e sólido, dificilmente se pode dar em nós virtude sem mancha, ou perfeito vício: a justiça também se compõe de iniquidade, semelhante à harmonia, que não pode subsistir sem dissonância, antes com correspondência certa, a dissonância é uma parte da harmonia. Vemos as cousas pelo modo com que as podemos ver, isto é, confusamente, e por isso quási sempre as vemos como elas não são.
As paixões formam dentro de nós um intrincado labirinto, e neste se perde o verdadeiro ser das cousas, porque cada uma delas se apropria à natureza das paixões por onde passa. Tomamos por substância, e entidade, o que não é mais do que um costume de ver, de ouvir, e de entender;
A Felicidade é tão Cansativa como a Infelicidade
Toda a gente tem o seu método de interpretar a seu favor o balanço das suas impressões, para que daí resulte de algum modo aquele mínimo de prazer necessário às suas existências quotidianas, o suficiente em tempos de normalidade. O prazer da vida de cada um pode ser também constituído por desprazer, essas diferenças de ordem material não têm importância; sabemos que existem tantos melancólicos felizes como marchas fúnebres, que pairam tão suavemente no elemento que lhes é próprio como uma dança no seu. Talvez também se possa afirmar, ao contrário, que muitas pessoas alegres de modo nenhum são mais felizes do que as tristes, porque a felicidade é tão cansativa como a infelicidade; mais ou menos como voar, segundo o princípio do mais leve ou mais pesado do que o ar. Mas haveria ainda uma outra objecção: não terá razão aquela velha sabedoria dos ricos segundo a qual os pobres não têm nada a invejar-lhes, já que é pura fantasia a ideia de que o seu dinheiro os torna mais felizes? Isso só lhes imporia a obrigação de encontrar um sistema de vida diferente do seu, cujo orçamento, em termos de prazer, fecharia apenas com um mínimo excedente de felicidade,
Neruda e García Lorca em Homenagem a Rubén Dario
Eis o texto do discurso:
Neruda: Senhoras…
Lorca: …e senhores. Existe na lide dos touros uma sorte chamada «toreio dei alimón», em que dois toureiros furtam o corpo ao touro protegidos pela mesma capa.
Neruda: Federico e eu, ligados por um fio eléctrico, vamos emparelhar e responder a esta recepção tão significativa.
Lorca: É costume nestas reuniões que os poetas mostrem a sua palavra viva, prata ou madeira, e saúdem com a sua voz própria os companheiros e amigos.
Neruda: Mas nós vamos colocar entre vós um morto, um comensal viúvo, escuro nas trevas de uma morte maior que as outras mortes, viúvo da vida, da qual foi na sua hora um marido deslumbrante. Vamos esconder-nos sob a sua sombra ardente, vamos repetir-lhe o nome até que a sua grande força salte do esquecimento.
Lorca: Nós, depois de enviarmos o nosso abraço com ternura de pinguim ao delicado poeta Amado Villar, vamos lançar um grande nome sobre a toalha, na certeza de que vão estalar as taças, saltar os garfos, buscando o olhar que todos anseiam, e que um golpe de mar há-de manchar as toalhas. Nós vamos evocar o poeta da América e da Espanha: Rubén…
A Sede de Explicações
Tão irredutível quanto a necessidade de crer, a necessidade de explicações acompanha o homem desde o berço até ao túmulo. Ela contribuiu para criar os seus deuses e diariamente determina a génese de numerosas opiniões. Essa necessidade intensa facilmente se satisfaz. As respostas mais rudimentares são suficientes. A facilidade com que é contentada foi a origem de grande número de erros. Sempre ávido de certezas definitivas, o espírito humano guarda muito tempo as opiniões falsas fundadas na necessidade de explicações e considera como inimigos do seu repouso aqueles que as combatem.
O principal inconveniente das opiniões baseadas em explicações erróneas é que, admitindo-as como definitivas, o homem não procura outras. Supor que se conhece a razão das coisas é um meio seguro de não a descobrir. A ignorância da nossa ignorância tem retardado de longos séculos os progressos das ciências e ainda, aliás, os restringe. A sede de explicações é tal que sempre foi achada alguma para os fenómenos menos compreensíveis. O espírito tem mais satisfação em admitir que Júpiter lança o raio do que em se confessar ignorante em relação às causas que o fazem rebentar. Para não confessar a sua ignorância em certos assuntos, a própria ciência muitas vezes se contenta com explicações análogas.
O Pranto e o Riso
Se o Pranto e o Riso aparecessem neste grande teatro no traje da verdade (sempre nua), sem dúvida seria a vitória do Pranto. Mas vestido, ornado e armado de uma tão superior eloquência, que o Riso se ria do Pranto, não é merecimento, foi sorte. De tudo quanto ri saiu vestido, ornado e armado o Riso: riem-se os prados e saiu vestido de flores: ri-se a Aurora, e saiu ornado de luzes; e se aos relâmpagos e raios chamou a Antiguidade Risus Vestae, et Vulcani, entre tantos relâmpagos, trovões e raios de eloquência, quem não julgará ao miserável Pranto cego, atónito e fulminado? Tal é a fortuna, ou a natureza, destes dois contrários. Por isso nasce o Riso na boca, como eloquente, e o Pranto nos olhos, como mudo.
(…) Demócrito ria sempre: logo nunca ria. A consequência parece difícil e é evidente. O Riso, como dizem todos os Filósofos, nasce da novidade e da admiração e cessando a novidade ou a admiração, cessa também o riso; e como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo, e o que é ordinário e se vê sempre não pode causar admiração nem novidade; segue-se que nunca ria, rindo sempre, pois não havia matéria que motivasse o riso.
Preciso de Ti
O amor é bem capaz de ser a melhor maneira de nos encontrarmos connosco.
Preciso de ti para saber de mim.
Sei-o sempre que por minutos parece que vou perder-te, numa discussão das que vamos tendo. Discutir é abrir a válvula do amor, deixá-lo respirar, sangrá-lo para poder regressar à estrada. Nenhum amor aguenta sem sangrar.
Preciso de ti para pensar em mim.
Sei-o porque quando parece que vais eu vou também, deixo de saber quem sou, como sou. Para onde vou.
Preciso de ti para precisar de mim.
E os que não me entendem que vão para o raio que os parta. Os que dizem que isto não é nada recomendável, que isto não devia ser assim, que eu devia ser capaz de ser o que sou sem precisar de ti. Infelizes.
Preciso de ti para cuidar de mim.
O amor é bem capaz de ser precisar do outro para cuidarmos de nós.
E eu cuido-me. Quero estar viva para te poder amar. Conheces melhor motivo do que esse? É claro que amo os meus pais, a minha família toda, os meus gatos, aquilo que a vida me tem dado.
O Riso é o Melhor Indicador da Alma
Acho que, na maioria dos casos, quando uma pessoa se ri torna-se nojento olharmos para ela. Manifesta-se no riso das pessoas, na maioria das vezes, qualquer coisa de grosseiro que humilha a quem ri, embora essa pessoa quase nunca saiba que efeito o seu riso provoca. Tal como não sabe (ninguém sabe, aliás) a cara que faz quando dorme. Há quem mantenha no sono uma cara inteligente, mas outros há que, embora inteligentes, fazem uma cara tão estúpida a dormir que se torna ridícula.
Não sei por que tal acontece, apenas quero salientar que a pessoa que ri, tal como a pessoa que dorme, não sabe a cara que faz. De uma maneira geral, há muitíssimas pessoas que não sabem rir. Aliás, isso não é coisa que se aprenda: é um dom, não se pode aperfeiçoar o riso. A não ser que nos reeduquemos interiormente, que nos desenvolvamos para melhor e que superemos os maus instintos do nosso carácter: então também o riso poderá possivelmente mudar para melhor. A pessoa manifesta no riso aquilo que é, é possível conhecermos num instante todos os seus segredos.
Mesmo o riso incontestavelmente inteligente é, às vezes, abominável. O riso exige em primeiro lugar sinceridade,
Acredita no Teu Próprio Pensamento
Acredita no teu próprio pensamento; crer que o que é certo para ti, no teu coração, o é também para todos os homens – isso é o génio. Expressa a tua convicção latente e ela será o juízo universal; pois sempre o mais íntimo se converte no mais externo, e o nosso primeiro pensamento é-nos devolvido pelas trombetas do Juízo Final. A voz da mente é familiar a cada um; o maior mérito que atribuímos a Moisés, Platão e Milton é o de terem reduzido a nada livros e tradições, e dito o que pensavam eles próprios, não o que pensavam os homens. Um homem deveria aprender a distinguir e contemplar esse raio de luz que brilha através da sua mente, vindo do interior, melhor do que o brilho do firmamento de bardos e sábios. E, no entanto, expulsa o seu pensamento, sem lhe dar importância, apenas porque é o seu.
Em toda a obra de génio, reconhecemos os nossos próprios pensamentos rejeitados; são-nos devolvidos com uma certa majestade alienada. As grandes obras de arte não nos oferecem lição mais impressionante do que essa. Elas ensinam-nos a aceitar, com bem humorada inflexibilidade, as nossas impressões espontâneas, especialmente quando todo o clamor das vozes esteja do lado oposto.
A Cautela dos Espíritos Livres
Os homens de espírito livre, que vivem só para o conhecimento, em breve acharão ter alcançado a sua definitiva posição relativamente à sociedade e ao Estado e, por exemplo, dar-se-ão de bom grado por satisfeitos com um pequeno emprego ou com uma fortuna que chega à justa para viver; pois arranjar-se-ão para viver de maneira que uma grande transformação dos bens materiais, até mesmo um derrube da ordem política, não deite também abaixo a sua vida. Em todas essas coisas eles gastam a menor energia possível, de modo a poderem imergir, com todas as forças reunidas e, por assim dizer, com um grande fôlego, no elemento do conhecimento. Podem, assim, ter esperança de mergulhar profundamente e também de, talvez, verem bem até ao fundo.
De um dado acontecimento, um tal espírito pegará de bom grado só numa ponta: ele não gosta das coisas em toda a sua amplitude e superabundância das suas pregas, pois não se quer emaranhar nelas. Também ele conhece os dias de semana da falta de liberdade, da dependência, da servidão. Mas, de tempos a tempos, tem de lhe aparecer um domingo de liberdade, senão ele não suportará a vida. É provável que mesmo o seu amor pelos seres humanos seja cauteloso e com pouco fôlego,
Prudência é o Saber Acomodar
Espaçosa esfera é a do entendimento para discorrer por todos os objectos, e contudo tem seus intervalos em que acha comodidades o corpo: não descansa este no silêncio da noite, sem que aquele se esconda no mais interior da alma. Ainda o discorrer demasiado, dando voltas ao entendimento, é arriscar a que dê o entendimento uma volta; e como é arriscado o discorrer sem termo, não é o menos perigoso o luzir sem pausa. Seus intervalos hão-de ter os luzimentos grandes, e nem por isso deixarão de ser lúcidos intervalos, quando o saber acomodar é para melhor luzir; por isso o Sol é o melhor dos planetas, porque sabe acomodar suas luzes à dureza do diamante, como à brandura da cera; e os mesmos raios que infundem a dureza no bronze, se acomodam aos melindres de uma flor. Prudência é o saber acomodar, para melhor luzir e viver.
Brilhar com demasiado luzimento nas acções, mais estorva os aplausos do que os granjeia; porque, na opinião de Séneca, não sabem os homens aplaudir senão aquilo que só podem imitar. Com ser a luz do Sol o mais agradável objecto à vista, contudo, se é grande o excesso de seus ardores,