Textos sobre Recordações

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Textos de recordações escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

O Eterno é a Própria Vida

Segundo a expressão de Lavelle, a morte dá «a todos os acontecimentos que a precederam esta marca do absoluto que nunca possuiriam se não viessem a interromper-se». O absoluto habita em cada uma das nossas empresas, na medida em que cada uma se realiza de uma vez para sempre e não será nunca recomeçada. Entra na nossa vida através da sua própria temporalidade. Assim o eterno torna-se fluido e reflui do fim ao coração da vida. A morte já não é a verdade da vida, a vida já não é a espera do momento em que a nossa essência será alterada. O que há sempre de incoactivo, de incompleto e de constrangedor no presente não é já um sinal de menor realidade.
Mas então a verdade de um ser já não é aquilo em que se tornou no fim ou a sua essência, mas o seu devir activo ou a sua existência. E se, como Lavelle dizia em tempos, nos julgamos mais perto dos mortos que amámos do que dos vivos, é porque já nos não põem em dúvida e daqui para o futuro podemos sonhá-los a nosso gosto. Esta piedade é quase ímpia. A única recordação que lhes diz respeito é a que se refere ao uso que faziam de si próprios e do seu mundo,

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O Desejo de Criar

Diotima: Qual é, Sócrates, na sua opinião, a causa deste amor, deste desejo? Você já observou em que estranha crise se encontram todos os animais, os que voam e os que marcham, quando são tomados pelo desejo de procriar? Como ficam doentes e possuídos de desejo, primeiro no momento de se ligarem, depois, quando se torna necessário alimentar os filhos? (… ) Tanto no caso dos humanos como no dos animais, a natureza mortal busca, na medida do possível, perpetuar-se e imortalizar-se. Apenas desse modo, por meio da procriação, a natureza mortal é capaz da imortalidade, deixando sempre um jovem no lugar do velho. [… ] Pois saiba, Sócrates, que o mesmo vale para a ambição dos homens. Você ficará assombrado com a sua misteriosa irracionalidade, a não ser que compreenda o que eu disse, e reflicta sobre o que se passa com eles quando são tomados pela ambição e pelo desejo de glória eterna. É pela fama, mais ainda que pelos seus filhos, que eles se dispõem a encarar todos os riscos, suportar fadigas, esbanjar fortunas e até mesmo sacrificar as suas vidas. [… ] Aqueles cujo instinto criador é físico recorrem de preferência às mulheres e revelam o seu amor dessa maneira,

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A Mudança só se Dá na Continuidade

Dirigirmo-nos a alguém com a missão de que se transforme noutro, é irmos com a embaixada de que ele deixe de ser ele. Cada qual defende a sua personalidade, e só aceita uma mudança na sua maneira de pensar ou de sentir, na medida em que esta alteração possa entrar na unidade do seu espírito e enredar-se na sua continuidade; na medida em que essa mudança se puder harmonizar e se conseguir integrar com tudo o resto da sua maneira de ser, pensar e sentir, e possa, por outro lado, enlaçar-se nas suas recordações. Nem a um homem, nem a um povo – que, em certo sentido, também é um homem – se pode exigir uma mudança, que desfaça a unidade e a continuidade da sua pessoa. Pode-se mudá-lo muito, quase até por completo; mas sempre, dentro da continuidade.
É certo que, em certos indivíduos, acontece aquilo a que se chama mudança de personalidade; mas isso é um caso patológico, e é como tal que os psiquiatras o estudam. Nessas alterações de personalidade, a memória, base da consciência, arruina-se por completo e, ao pobre paciente, só resta, como substracto de continuidade individual – já que não pessoal -, o organismo físico.

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O Rápido Passar do Tempo é Sinal de Inactividade

O ócio torna lentas as horas e velozes os anos. A actividade torna rápida as horas e lentos os anos. A infância é a actividade máxima, porque ocupada em descobrir o mundo na sua diversidade.
Os anos tornam-se longos na recordação se, ao repensá-los, encontramos numerosos factos a desenvolver pela fantasia. Por isso, a infância parece longuíssima. Provavelmente, cada época da vida é multiplicada pelas sucessivas reflexões das que se lhe seguem: a mais curta é a velhice, porque nunca será repensada.
Cada coisa que nos aconteceu é uma riqueza inesgotável: todo o regresso a ela a aumenta e acresce, dota de relações e aprofunda. A infãncia não é apenas a infância vivida, mas a ideia que fazemos dela na juventude, na maturidade, etc. Por isso, parece a época mais importante, visto ser a mais enriquecida por considerações sucessivas.
Os anos são uma unidade da recordação; as horas e os dias, uma unidade da experiência.

Felicidade Aparente

Ao reflectir sobre a frescura das recordações, sobre a cor encantada de que elas se revestem num passado longínquo, não pude deixar de admirar esse trabalho involuntário da alma que separa e suprime na recordação desses momentos agradáveis tudo o que poderia diminuir o encanto do momento então vivido.
(…) Poderá uma pessoa afirmar ter sido feliz num determinado momento da sua vida, que lhe parece encantador retrospectivamente? O próprio facto de o recordar ao dar-se conta da felicidade que então deve ter sentido deve satisfazê-lo. Mas ter-se-ia sentido efectivamente feliz nesse instante de pretensa felicidade?
Pode-se compara essa pessoa com um indivíduo que possuísse uma parcela de terra em que estivesse escondido um tesouro, do qual ele, contudo, não teria conhecimento. Poder-se-à considerar «rico» esse homem? Do mesmo modo não considero feliz aquele que o é sem se aperceber disso, ou sem saber a que ponto monta a sua felicidade.

Memória vs Recordação – As Armas da Juventude e da Velhice

Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira nenhuma idênticos. A gente pode muito bem lembrar-se de um evento, rememorá-lo com todos os pormenores, sem por isso dele ter a recordação. A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que se apresente para consagrar a recordação. Esta distinção torna-se manifesta ao exame das diversas idades da vida. O velho perde a memória, que geralmente é de todas as faculdades a primeira a desaparecer. No entanto, o velho tem algo de poeta; a imaginação popular vê no velho um profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a sua melhor força, a consolação que os sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de poeta. Ao invés, o moço possui a memória em alto grau, usa dela com facilidade, mas falta-lhe o mínimo dom de se recordar. Em vez de dizer: «aprendido na mocidade, conservado na velhice», poderíamos propor: «memória na mocidade, recordação na velhice». Os óculos dos velhos são graduados para ver ao perto; mas o moço que tem de usar óculos, usa-os para ver ao longe; porque lhe falta o poder da recordação, que tem por efeito afastar,

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O Passado como Base para o Presente

O tempo, na sua marcha, utiliza e destrói o que é temporal. Também nele existe mais eternidade no passado que no presente. Valor da história efectivamente cumprida, semelhante à da recordação em Proust. Deste modo, o passado apresenta-nos qualquer coisa que é, simultaneamente, real e melhor que nós, e que pode empurrar-nos para cima, coisa que o futuro nunca faz.

Lembrar ou Recordar

A recordação não tem apenas que ser exacta; tem que ser também feliz; é preciso que o aroma do vivido esteja preservado, antes de selar-se a garrafa da recordação. Tal como a uva não deve ser pisada em qualquer altura, tal como o tempo que faz no momento de esmagá-la tem grande influência no vinho, também o que foi vivido não está em qualquer momento ou em qualquer circunstância pronto para ser recordado ou pronto para dar entrada na interioridade da recordação.
Recordar não é de modo algum o mesmo que lembrar. Por exemplo, alguém pode lembrar-se muito bem de um acontecimento, até ao mais ínfimo pormenor, sem contudo dele ter propriamente recordação. A memória é apenas uma condição transitória. Por intermédio da memória o vivido apresenta-se à consagração da recordação.
A diferença é reconhecível logo nas diferentes idades da vida. O ancião perde a memória, que aliás é a primeira capacidade a perder-se. Contudo, o ancião tem em si algo de poético; de acordo com a representação popular ele é profeta, é divinamente inspirado. A recordação é afinal também a sua melhor força, a sua consolação: consola-o com esse alcance da visão poética.
A infância, pelo contrário,

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A Memória da Leitura

Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido. Tudo quanto, ao que parecia, os enchia para os outros, e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: a brincadeira para a qual um amigo nos vinha buscar na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol incomodativos que nos obrigavam a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, as provisões para o lanche que nos obrigavam a levar e que deixávamos ao nosso lado no banco, sem lhes tocar, enquanto, sobre a nossa cabeça, o sol diminuía de intensidade no céu azul, o jantar que motivara o regresso a casa e durante o qual só pensávamos em nos levantarmos da mesa para acabar, imediatamente a seguir, o capítulo interrompido, tudo isto, que a leitura nos devia ter impedido de perceber como algo mais do que a falta de oportunidade, ela pelo contrário gravava em nós uma recordação de tal modo doce (de tal modo mais preciosa no nosso entendimento actual do que o que líamos então com amor) que, se ainda hoje nos acontece folhear esses livros de outrora,

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O Deserto num Mundo Abastado

Tenderíamos ilusoriamente a crer que uma vida nascida num mundo abastado seria melhor, mais vida e de superior qualidade à que consiste, precisamente, em lutar com a escassez. Mas não é verdade. Por razões muito rigorosas e arquifundamentais que agora não é oportuno enunciar. Agora, em vez dessas razões, basta recordar o facto sempre repetido que constitui a tragédia de toda a aristocracia hereditária. O aristocrata herda, quer dizer, encontra atribuídas à sua pessoa umas condições de vida que ele não criou, portanto, que não se produzem organicamente unidas à sua vida pessoal e própria. Acha-se ao nascer instalado, de repente e sem saber como, no meio da sua riqueza e das suas prerrogativas. Ele não tem, intimamente, nada que ver com elas, porque não vêm dele. São a carapaça gigantesca de outra pessoa, de outro ser vivente, seu antepassado. E tem de viver como herdeiro, isto é, tem de usar a carapaça de outra vida. Em que ficamos? Que vida vai viver o «aristocrata» de herança, a sua ou a do prócer inicial? Nem uma nem outra. Está condenado a representar o outro, portanto, a não ser nem o outro nem ele mesmo.
A sua vida perde inexoravelmente autenticidade,

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A Alma Transforma-se em Sensações

Eis um efeito que me será contestado, e que só apresento aos homens que, digamos, são bastante infelizes para terem amado com paixão durante longos anos, dum amor contrariado por obstáculos invencíveis:
A vista de tudo o que é extremamente belo, tanto na natureza como nas artes, traz-nos a recordação do que amamos, com a rapidez de um relâmpago. É que, pelo processo do ramo de árvore guarnecido de diamantes da mina de Salzburgo, tudo o que no mundo é belo e sublime faz parte da beleza do que amamos, e esta visão imprevista da felicidade enche-nos os olhos de lágrimas num instante. É assim que o amor do belo e o amor se dão vida um ao outro.
Uma das infelicidades da vida é que a ventura de ver a quem amamos e de lhe falar não deixa recordações distintas. Aparentemente, a alma está demasiado perturbada pelas suas emoções para poder prestar atenção ao que as causa ou as acompanha. Transforma-se na própria sensação. É talvez porque estes prazeres não se podem renovar sempre que queremos, por simples força de vontade, que se renovam com tanta força, desde que um objecto qualquer nos venha tirar da meditação consagrada à mulher que amamos,

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A Arte da Recordação

A memória é não-mediada, e o que vem em seu auxílio vem directamente; a recordação é sempre reflectida. É por isso que recordar é uma arte. Como Temístocles, em vez de lembrar, desejo poder esquecer; porém, recordar e esquecer não são opostos. Não é fácil a arte de recordar, porque a recordação, no momento em que é preparada, pode modificar-se, enquanto a memória se limita a flutuar entre a lembrança certa e a lembrança errada. Por exemplo, o que é a saudade? É vir à recordação algo que está na memória. A saudade gera-se simplesmente pelo facto de se estar ausente. Arte seria conseguir sentir-se saudade sem se estar ausente. Para tanto é preciso estar-se treinado em matéria de ilusão. Viver numa ilusão, em que o crepúsculo é contínuo e nunca se faz dia, ou alguém ver-se reflectido numa ilusão, não é tão difícil como alguém reflectir-se para dentro de uma ilusão e ser capaz de deixá-la agir sobre si, com todo o poder que é o da ilusão, apesar de se ter pleno conhecimento disso. A magia de trazer até si o passado não é tão difícil como a de fazer desaparecer o que está presente em benefício da recordação.

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O Meu Carácter

Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou. Não importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito. É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo.
Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por de mais inteligente.
Pelas minhas tendências naturais, pelas circunstâncias que rodearam o alvor da minha vida, pela influência dos estudos feitos sob o seu impulso (estas mesmas tendências) – por tudo isto o meu carácter é do género interior, autocêntrico, mudo, não auto-suficiente mas perdido em si próprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carácter consiste no ódio, no horror e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, física e mentalmente, para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma decisão nascida do autodomínio, jamais traí externamente uma vontade consciente. Os meus escritos,

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Sou a Tua Casa

Sou a tua casa, a tua rua, a tua segurança, o teu destino. Sou a maçã que comes e a roupa que vestes. Sou o degrau por onde sobes, o copo por onde bebes, o teu riso e o teu choro, o teu frio e a tua lareira. O pedinte que ajudas, o asilo que te quer acolher. Sou o teu pensamento, a tua recordação, a tua vontade. E também o artesão que para ti trabalha, o medo que te perturba e o cão que te guia quando entras pela noite. Sou o sítio onde descansas, a árvore que te dá sombra, o vento que contigo se comove. Sou o teu corpo, o teu espírito, o teu brilho, a tua dúvida. Sou a tua mãe, o teu amante, o marfim dos teus dentes. E sou, na luz do outono, o teu olhar. Sou a tua parteira e a tua lápide. Os teus vinte anos. O coração sepultado em ti. Sou as tuas asas, a tua liberdade, e tudo o que se move no teu interior. Sou a tua ressaca, o teu transtorno, o relógio que mede o tempo que te resta. Sou a tua memória, a memória da tua memória,

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O Homem Deformado pela Sociedade

Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices. O homem — não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito, apertando e forçando em seus moldes de ferro aquela pasta de limo que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade — o homem assim aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita na terra.

Rei nascido de todo o criado, perdeu a realeza: príncipe deserdado e proscrito, hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados, altivo ainda e soberbo com as recordações do passado, baixo, vil e miserável pela desgraça do presente.
Destas duas tão apostas actuações constantes, que já per si sós o tornariam ridículo, formou a sociedade, em sua vã sabedoria, um sistema quimérico, desarrazoado e impossível, complicado de regras a qual mais desvairada, encontrado de repugnâncias a qual mais aposta. E vazado este perfeito modelo de sua arte pretensiosa, meteu dentro dele o homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e disparatado, doente, fraco, raquítico; colocou-o no meio do Éden fantástico de sua criação — verdadeiro inferno de tolices — e disse-lhe,

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Conquista e Governação

Quando os estados que se conquistam têm a tradição de viver segundo as suas leis e em liberdade, para a sua conservação existem três opções: a primeira é a sua destruição; a segunda é ir para lá viver o príncipe conquistador; e a terceira consiste em deixá-los viver de acordo com as suas leis, mas exigindo-lhes um tributo e criando no seu seio uma oligarquia que vos garanta a sua fidelidade. Porque, sendo este novo poder uma criação daquele príncipe, sabem os seus mandatários que não podem sobreviver sem a sua amizade e apoio, tudo havendo de fazer para manter o novo regime. E mais facilmente se conserva uma cidade habituada a viver livre através do consenso dos seus cidadãos do que de qualquer outro modo.
(…) Na verdade, o único modo seguro de conservar uma cidade conquistada é a sua destruição. Quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver livre e a não desfaça, pode preparar-se para ser por ela desfeito, porque sempre encontrarão grande receptividade no seio da rebelião a recordação da liberdade e das antigas instituições, as quais nem pela acção do tempo nem pela concessão de benesses se apagarão da sua memória. O que quer que se faça ou se disponha,

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A Inconstância no Amor e na Amizade

Não pretendo justificar aqui a inconstância em geral, e menos ainda a que vem só da ligeireza; mas não é justo imputar-lhe todas as transformações do amor. Há um encanto e uma vivacidade iniciais no amor que passa insensivelmente, como os frutos; não é culpa de ninguém, é culpa exclusiva do tempo. No início, a figura é agradável, os sentimentos relacionam-se, procuramos a doçura e o prazer, queremos agradar porque nos agradam, e tentamos demonstrar que sabemos atribuir um valor infinito àquilo que amamos; mas, com o passar do tempo, deixamos de sentir o que pensávamos sentir ainda, o fogo desaparece, o prazer da novidade apaga-se, a beleza, que desempenha um papel tão importante no amor, diminui ou deixa de provocar a mesma impressão; a designação de amor permanece, mas já não se trata das mesmas pessoas nem dos mesmos sentimentos; mantêm-se os compromissos por honra, por hábito e por não termos a certeza da nossa própria mudança.
Que pessoas teriam começado a amar-se, se se vissem como se vêem passados uns anos? E que pessoas se poderiam separar se voltassem a ver-se como se viram a primeira vez? O orgulho, que é quase sempre senhor dos nossos gostos,

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Envelhecer

Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o sginificado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer… Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreeende nem o imprevisto,

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A Insustentável Leveza do Ser

Eis que ao despedir-vos, esse teu amigo te diz que ele não é esse teu amigo mas sim um seu irmão gémeo. Imediatamente uma alteração profunda se instalou nas vossas relações. Mas se te perguntares em quê, não é fácil responderes. Naturalmente dirias que esse teu amigo não era ele, que era outra pessoa. Mas outra em quê? O corpo é igual nos mínimos pormenores, igual a face e os gestos e a voz e os olhos. Iguais as ideias, os sentimentos, as recordações, o todo integral da sua vida e do que ele é. Se percorreres todos os pormenores, encontrá-los-ás em hipótese absolutamente iguais. Começa onde quiseres, examina cada minúcia que constitui o teu amigo, progride até ao mais extremo limite e verificarás que nada escapa a uma integral igualdade. Mas se isto é assim, deveria ser-te indiferente seres amigo deste como eras amigo do outro. Pois se uma pessoa é aquilo que ela nos é, se uma pessoa é aquilo que a manifesta, se aquilo que nos define é aquilo que somos e se esse alguém que encontrámos em nada difere, em hipótese, do alguém que esperávamos encontrar, nenhuma razão havia para que as relações com ele se perurbassem.

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A Satisfação do Trabalho

Para não sofrer, trabalha. Sempre que puderes diminuir o teu tédio ou o teu sofrimento pelo trabalho, trabalha sem pensar. Parece simples à primeira vista. Eis um exemplo trivial: saí de casa e sinto que as roupas me incomodam, mas com a preguiça de voltar atrás e mudar de roupa continuo a caminhar. Existem contudo muitos outros exemplos. Se se aplicasse esta determinação tanto às coisas banais da existência como às coisas importantes, comunicar-se-ia à alma um fundo e um equilíbrio que constituem o estado mais propício para repelir o tédio.
Sentir que fazemos o que devemos fazer aumenta a consideração que temos por nós próprios; desfrutamos, à falta de outros motivos de contentamento, do primeiro dos prazeres – o de estar contente consigo mesmo… É enorme a satisfação de um homem que trabalhou e que aproveitou convenientemente o seu dia. Quando me encontro nesse estado, gozo depois, deliciadamente, com o repouso e os mais pequenos lazeres. Posso mesmo encontrar-me no meio das pessoas mais aborrecidas, sem o menor desagrado; a recordação do trabalho feito não me abandona e preserva-me do aborrecimento e da tristeza.