Textos sobre Pedras de Miguel Torga

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Textos de pedras de Miguel Torga. Leia este e outros textos de Miguel Torga em Poetris.

Devo à Paisagem as Poucas Alegrias que Tive no Mundo

Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. É claro que nunca um panorama me interessou como gargarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras, e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha dum perfil.

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Vivemos numa Paz de Animais Domésticos

Uma cobra de água numa poça do choupal, a gozar o resto destes calores, e umas meninas histéricas aos gritinhos, cheias de saber que o bicho era tão inofensivo como uma folha.
Por fidelidade a um mandato profundo, o nosso instinto, diante de certos factos, ainda quer reagir. Mas logo a razão acode, e o uivo do plasma acaba num cacarejo convencional. Todos os tratados e todos os preceptores nos explicaram já quantas espécies de ofídios existem e o soro que neutraliza a mordedura de cada um. Herdamos um mundo já quase decifrado, e sabemos de cor as ervas que não devemos comer e as feras que nos não podem devorar. Vivemos numa paz de animais domésticos, vacinados, com os dentes caninos a trincar pastéis de nata, tendo aos pés, submissos, os antigos pesadelos da nossa ignorância. Passamos pela terra como espectros, indo aos jardins zoológicos e botânicos ver, pacata e sàbiamente, em jaulas e canteiros, o que já foi perigo e mistério. E, por mais que nos custe, não conseguimos captar a alma do brinquedo esventrado. O homem selvagem, que teve de escolher tudo, de separar o trigo do joio, de mondar dos seus reflexos o que era manso e o que era bravo,

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Uma Grande parte da Arte é para Morrer

A pasmaceira dum domingo português, que até mesmo em Lisboa é de desiludir um pícnico (quanto mais um asténico!), levou-me ao abismo onde todo o provinciano que aqui chega tem de cair, se não quer esperar no café pelo comboio do regresso. Refiro-me, claro, à inevitável revista. E fez-me bem, porque assentei ideias sobre alguns problemas de literatura e arte.
Os risos desarticulados que pelo mundo a cabo desaguam nos muitos parques Meyer, o que são em verdade senão o prolongamento protoplásmico de certas farsas medievais? Revistas também daqueles atribulados tempos, as peças primitivas que até nós chegaram não têm outro mérito senão mostrar-nos que já então se dizia mal dos tiranos em trocadilhescas palavras e significativos gestos, ficando-nos ao cabo da sua penosa leitura a humana consolação de sabermos que o povo ria a bandeiras despregadas da própria miséria, e aliviava assim as suas penas.
Uma grande parte da arte é para morrer, e a pedra de toque da sua caducidade está em ela falar apaixonadamente de pessoas e acontecimentos inteiramente esquecidos da lembrança da História. Poder-se-á dizer que não se trata de beleza pura, a qual tem uma perenidade que transcende o circunstancial. Não é verdade.

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