As Oscilações da Personalidade
Pretender que a nossa personalidade seja mĂłvel e susceptĂvel de grandes mudanças Ă©, por vezes, noção um pouco contrária Ă s idĂ©ias tradicionais atinentes Ă estabilidade do “eu”. A sua unidade foi durante muito tempo um dogma indiscutĂvel. Factos numerosos vieram provar quanto esta ideia era fictĂcia.
O nosso “eu” Ă© um total. Compõe-se da adição de inumeráveis “eu” celulares. Cada cĂ©lula concorre para a unidade de um exĂ©rcito. A homogeneidade dos milhares de indivĂduos que o compõem resulta somente de uma comunidade de acção que numerosas coisas podem destruir.
É inĂştil objectar que a personalidade dos seres parece, em geral, bastante estável. Se ela nunca varia, com efeito, Ă© porque o meio social permanece mais ou menos constante. Se subitamente esse meio se modifica, como em tempo de revolução, a personalidade de um mesmo indivĂduo poderá transformar-se por completo. Foi assim que se viram, durante o Terror, bons burgueses reputados pela sua brandura tornarem-se fanáticos sanguinários. Passada a tormenta e, por conseguinte, representando o antigo meio e o seu impĂ©rio, eles readquiriram sua personalidade pacifica. Desenvolvi, há muito tempo, essa teoria e mostrei que a vida dos personagens da Revolução era incompreensĂvel sem ela.
De que elementos se compõe o “eu”,
Textos sobre Revolução de Gustave Le Bon
8 resultadosA Crença só se Mantém pela Ritualização
Uma verdade racional Ă© impessoal e os factos que a sustentam ficam estabelecidos para sempre. Sendo, ao contrário, pessoais e baseadas em concepções sentimentais ou mĂsticas, as crenças sĂŁo submetidas a todos os factores susceptĂveis de impressionar a sensibilidade. Deveriam, portanto, ao que parece, modificar-se incessantemente.
As suas partes essenciais mantêm-se, contudo, mas cumpre que sejam constantemente alentadas. Qualquer que seja a sua força no momento do seu triunfo, uma crença que não é continuamente defendida logo se desagrega. A história está repleta de destroços de crenças que, por essa razão, tiveram apenas uma existência efémera. A codificação das crenças em dogmas constitui um elemento de duração que não poderia bastar. A escrita unicamente modera a acção destruidora do tempo.
Uma crença qualquer, religiosa, polĂtica, moral ou social mantĂ©m-se sobretudo pelo contágio mental e por sugestões repetidas. Imagens, estátuas, relĂquias, peregrinações, cerimĂ´nias, cantos, mĂşsica, prĂ©dicas, etc., sĂŁo os elementos necessários desse contágio e dessas sugestões.
Confinado num deserto, privado de qualquer sĂmbolo, o crente mais convicto veria rapidamente a sua fĂ© declinar. Se, entretanto, anacoretas e missionários a conservam, Ă© porque incessantemente relĂŞem os seus livros religiosos e, sobretudo, se sujeitam a uma multidĂŁo de ritos e de preces.
Opiniões Influenciadas pelo Interesse
A maior parte das coisas pode ser considerada sob pontos de vista muito diferentes: interesse geral ou interesse particular, principalmente. A nossa atenção, naturalmente concentrada sob o aspecto que nos Ă© proveitoso, impede que vejamos os outros. O interesse possui, como a paixĂŁo, o poder de transformar em verdade aquilo em que lhe Ă© Ăştil acreditar. Ele Ă©, pois, freqĂĽentemente, mais Ăştil do que a razĂŁo, mesmo em questões em que esta deveria ser, aparentemente, o guia Ăşnico. Em economia polĂtica, por exemplo, as convicções sĂŁo de tal modo inspiradas pelo interesse pessoal que se pode, em geral, saber prĂ©viamente, conforme a profissĂŁo de um indivĂduo, se ele Ă© partidário ou nĂŁo do livre câmbio.
As variações de opiniĂŁo obedecem, naturalmente, Ă s variações do interesse. Em matĂ©ria polĂtica, o interesse pessoal constitui o principal factor. Um indivĂduo que, em certo momento, energicamente combateu o imposto sobre a renda, com a mesma energia o defenderá mais, se conta ser ministro. Os socialistas enriquecidos acabam, em geral, conservadores, e os descontentes de um partido qualquer se transformam facilmente em socialistas.
O interesse, sob todas as suas formas, não é somente gerador de opiniões. Aguçado por necessidades muito intensas, ele enfraquece logo a moralidade.
A Maldade como Poderoso Elemento do Progresso Humano
Os sentimentos fixos e de forma constante qualificados de paixões constituem, tambĂ©m, possantes factores de opiniões, de crenças e, por conseguinte, de conduta. Certas paixões contagiosas tornam-se, por esse motivo, facilmente colectivas. A sua acção Ă©, entĂŁo, irresistĂvel. Elas precipitaram muitos povos uns contra os outros nas diversas fases da histĂłria. As paixões podem excitar a nossa actividade, porĂ©m, alteram, as mais das vezes, a justeza das opiniões, impedindo de ver as coisas como realmente sĂŁo e de compreender a sua gĂ©nese. Se nos livros de histĂłria sĂŁo abundantes os erros, Ă© porque, na maior parte dos casos, as paixões ditam a sua narrativa. NĂŁo se citaria, penso eu, um historiador que haja relatado imparcialmente a Revolução.
O papel das paixões Ă©, como vemos, muito considerável nas nossas opiniões e, por conseguinte, na gĂ©nese dos acontecimentos. NĂŁo sĂŁo, infelizmente, as mais recomendáveis que tĂŞm exercido maior acção. Kant reconheceu a grande força social das piores paixões. A maldade Ă©, no seu juĂzo, um poderoso elemento do progresso humano. Parece, infelizmente, muito certo que, se os homens tivessem seguido o preceito do Evangelho “Amai-vos uns aos outros”, ao invĂ©s de obedecerem ao da Natureza, que os incita a se destruĂrem mutuamente,
O Regulador do Prazer e da Dor: o Hábito
O hábito Ă© o grande regulador da sensibilidade; ele determina a continuidade dos nossos atos, embota o prazer e a dor e nos familiariza com as fadigas e com os mais penosos esforços. O mineiro habitua-se tĂŁo bem Ă sua dura existĂŞncia que dela se recorda saudoso quando a idade o obriga a abandoná-la e o condena a viver ao sol. O hábito, regulador da vida habitual, Ă© tambĂ©m o verdadeiro sustentáculo da vida social. Pode-se compará-lo Ă inĂ©rcia, que se opõe, em mecânica, Ă s variações de movimento. A dificuldade para um povo consiste, primeiramente, em criar hábitos sociais, depois em nĂŁo permanecer muito tempo neles. Quando o jugo dos hábitos pesou muito tempo num povo, ele sĂł se liberta desse jugo por meio de revoluções violentas. O repouso na adaptação, que o hábito consiste, nĂŁo se deve prolongar. Povos envelhecidos, civilizações adiantadas, indivĂduos idosos tendem a sofrer demasiado o jugo do costume, isto Ă©, do hábito.
Seria inútil dissertar longamente sobre o seu papel, que mereceu a atenção de todos os filósofos e se tornou um dogma da sabedoria popular.
“Que sĂŁo os nossos princĂpios naturais”, diz Pascal, “senĂŁo os nossos princĂpios acostumados. E nas crianças,
Os Elementos Fixadores da Personalidade
Os resĂduos ancestrais formam a camada mais profunda e mais estável do carácter dos indivĂduos e dos povos. É pelo seu “eu” ancestral que um inglĂŞs, um francĂŞs, um chinĂŞs, diferem tĂŁo profundamente.
Mas a esses remotos atavismos sobrepõem-se elementos suscitados pelo meio social (casta, classe, profissão, etc.), pela educação e ainda por muitas outras influências. Eles imprimem à nossa personalidade uma orientação assaz constante. Será o “eu”, um pouco artificial, assim formado, que exteriorizaremos cada dia.
Entre todos os elementos formadores da personalidade, o mais activo, depois da raça, é o que determina o agrupamento social ao qual pertencemos. Fundidas no mesmo molde pelas idéias, as opiniões e as condutas semelhantes que lhes são impostas, as individualidades de um grupo: militares, magistrados, padres, operários, marinheiros, etc., apresentam numerosos carácteres idênticos.
As suas opiniões e os seus juĂzos sĂŁo, em geral, vizinhos, porquanto sendo cada grupo social muito nivelador, a originalidade nĂŁo Ă© tolerada nele. Aquele que se quer diferenciar do seu grupo tem-no inteiramente por inimigo.
Essa tirania dos grupos sociais, na qual insistiremos, não é inútil. Se os homens não tivessem por guia as opiniões e a maneira de proceder daqueles que os cercam,
Contágio Mental
O contágio mental representa o elemento essencial da propagação das opiniões e das crenças. A sua força Ă©, muitas vezes, bastante considerável para fazer agir o indivĂduo contra os seus interesses mais evidentes. As inumeráveis narrações de martĂrios, de suicĂdios, de mutilações, etc., determinados por contágio mental fornecem uma prova disso.
Todas as manifestações da vida psĂquica podem ser contagiosas, mas sĂŁo, especialmente, as emoções que se propagam desse modo. As ideias contagiosas sĂŁo sĂnteses de elementos afectivos.
Na vida comum, o contágio pode ser limitado pela acção inibidora da vontade, mas, se uma causa qualquer – violenta mudança de meio em tempo de revolução, excitações populares, etc. – vĂŞm paralisá-la, o contágio exercerá facilmente a sua influĂŞncia e poderá transformar seres pacĂficos em ousados guerreiros, plácidos burgueses em terrĂveis sectários. Sob a sua influĂŞncia, os mesmos indivĂduos passarĂŁo de um partido para outro e empregarĂŁo tanta energia em reprimir uma revolução quanto em fomentá-la.
O contágio mental nĂŁo se exerce somente pelo contacto direto dos indivĂduos. Os livros, os jornais, as notĂcias telegráficas, mesmo simples rumores, podem produzi-lo.
Quanto mais se multiplicam os meios de comunicação tanto mais se penetram e se contagiam. A cada dia estamos mais ligados àqueles que nos cercam.
Não há Civilização sem Constrangimento
Toda a civilização traduz constrangimento e sujeição. Aprendendo, sob a rigorosa lei das primeiras obrigações sociais, a dominar um pouco as suas impulsões, o primitivo desprendeu-se da animalidade pura e chegou Ă barbárie. Forçado a refrear-se mais, ele elevou-se atĂ© Ă civilização. Esta sĂł se mantĂ©m enquanto persiste o domĂnio do homem sobre si mesmo.
Semelhante sujeição exige um esforço em todos os instantes. Seria quase impossĂvel se os hábitos, que a educação pode fixar, nĂŁo acabassem por o facilitar, tornando-o inconsciente.
Suficientemente desenvolvida, a disciplina interna pode chegar assim a substituir a disciplina externa; mas, quando não se soube criar uma, cumpre resignar-se a suportar a outra. Recusar uma e outra é retroceder aos tempos de barbárie. Os sentimentos conduzem-nos sempre, mas nenhuma sociedade pode subsistir sem que os membros aprendam a mantê-los nos limites abaixo dos quais começam a anarquia e a decadência.
Os sentimentos refreados pelas necessidades sociais, que codificam as leis, nĂŁo sĂŁo por essa razĂŁo destruĂdos. Libertadas das suas peias, as impulsões naturais primitivas reaparecem sempre. Explicam-se assim as violĂŞncias que acompanham as revoluções. O civilizado retrocede Ă barbárie.