NĂŁo Sei Dizer quem Sou
É curioso como nĂŁo sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas nĂŁo posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar nĂŁo sĂł nĂŁo exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir nĂŁo Ă© o que eu sinto mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressĂŁo está alojada na parte alta do cĂ©rebro, nos lábios — na lĂngua principalmente —, na superfĂcie dos braços e tambĂ©m correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu nĂŁo sei dizer. O gosto Ă© cinzento, um pouco avermelhado, nos pedaços velhos um pouco azulado, e move–se como gelatina, vagarosamente. As vezes torna-se agudo e me fere, chocando-se comigo. Muito bem, agora pensar em cĂ©u azul, por exemplo. Mas sobretudo donde vem essa certeza de estar vivendo? NĂŁo, nĂŁo passo bem. Pois ninguĂ©m se faz essas perguntas e eu… Mas Ă© que basta silenciar para sĂł enxergar, abaixo de todas as realidades, a Ăşnica irredutĂvel, a da existĂŞncia. E abaixo de todas as dĂşvidas — o estudo cromático — sei que tudo Ă© perfeito, porque seguiu de escala a escala o caminho fatal em relação a si mesmo.
Textos sobre SuperfĂcie de Clarice Lispector
2 resultadosMais do que Amor
O amor veio afirmar todas as coisas velhas de cuja existĂŞncia apenas sabia sem nunca ter aceito e sentido. O mundo rodava sob seus pĂ©s, havia dois sexos entre os humanos, um traço ligava a fome Ă saciedade, o amor dos animais, as águas das chuvas encaminhavam-se para o mar, crianças eram seres a crescer, na terra o broto se tornaria planta. NĂŁo poderia mais negar… o quĂŞ? — perguntava-se suspensa. O centro luminoso das coisas, a afirmação dormindo em baixo de tudo, a harmonia existente sob o que nĂŁo entendia.
Erguia-se para uma nova manhĂŁ, docemente viva. E sua felicidade era pura como o reflexo do sol na água. Cada acontecimento vibrava em seu corpo como pequenas agulhas de cristal que se espedaçassem. Depois dos momentos curtos e profundos vivia com serenidade durante largo tempo, compreendendo, recebendo, resignando-se a tudo. Parecia-lhe fazer parte do verdadeiro mundo e estranhamente ter-se distanciado dos homens. Apesar de que nesse perĂodo conseguia estender-lhes a mĂŁo com uma fraternidade de que eles sentiam a fonte viva. Falavam-lhe das prĂłprias dores e ela, embora nĂŁo ouvisse, nĂŁo pensasse, nĂŁo falasse, tinha um olhar bom — brilhante e misterioso como o de uma mulher grávida.