Textos sobre Vida de Miguel Torga

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Textos de vida de Miguel Torga. Leia este e outros textos de Miguel Torga em Poetris.

O Encanto da Vida

Todas as noites acordado até desoras, à espera da última cena de pancadaria num jogo de futebol, do último insulto num debate parlamentar, do último discurso demagógico num comício eleitoral, da última pirueta dum cabotino entrevistado, da última farsa no palco internacional. Crucificações masoquistas, que a prudência desaconselha e a imprudência impõe. Vou deste mundo farto de o conhecer e faminto de o descobrir.

Mas não há perspicácia, nem constância de atenção capazes de lhe prefigurar os imprevistos. O que acontece hoje excede sempre o que sucedeu ontem. A violência, o facciosismo, a ambição de poder, a crueldade e o exibicionismo não têm limites. Felizmente que a abnegação, a generosidade e o altruísmo também não. E o encanto da vida é precisamente esse: nenhum excesso nela ser previsível. Nem no mal nem no bem. E não me canso de o verificar, de surpresa em surpresa, à luz dos acontecimentos.

Quando julgo que estou devidamente informado sobre o amor, sobre o ódio, sobre a santidade, sobre a perfídia, sobre as virtudes e os defeitos humanos, acabo por concluir que soletro ainda o á-bê-cê da realidade. Cabeçudo como sou, teimo na aprendizagem. Hoje fizeram-me a revelação surpreendente de que um avarento meu conhecido,

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Prever o Futuro

Das coisas mais difíceis que há na vida é prever o futuro. Quando se tem quarenta anos, e já se pode olhar isto com certa perspectiva, é que se vê como se errou em todas as profecias. Conseguem-se vislumbrar, quando muito, as linhas gerais, os aspectos mais grosseiros das veredas do porvir. Isto, por exemplo: que a humanidade é móvel, oscilante, indo para o mau caminho quando vai no bom, e para o bom quando vai no mau.

Escravizados ao Além

Acabar com a morte como agonia diária da humanidade é talvez o maior bem que se pode fazer hoje ao homem. O cristianismo transformou a vida numa cruz, porque lhe pôs a consciência da morte à cabeceira. E crentes e ateus vivem no mesmo terror. Ora a ideia terrífica do fim não é uma condição fisiológica, nem mesmo intelectual do homem. Nem os Gregos, nem os Romanos, por exemplo, sentiam a morte com a irreparável angústia que nos rói. É forçoso, pois, que se arranquem as raízes desta dor, custe o que custar. Escravizados ao além, os nossos dias aqui não podem ter liberdade nem alegria. Qualquer doutrina que nega ao homem o direito de ser pleno na sua física duração, é uma doutrina de castração e de aniquilamento. Ir buscar ao post-mortem as leis que devem limitar a expansão abusiva da personalidade, é o artifício mais desgraçado que se podia inventar. Pregue-se e exija-se do indivíduo medida e disciplina, mas que nasçam da sua própria harmonia. Institua-se uma ética com raízes no mesmo chão onde o homem caminha.

Eu Acredito na História

Eu acredito na História. Por isso, espero que ela escarre um dia sobre esta época, agoniada de nojo. Será tarde, evidentemente, para que os tartufos de agora sintam o cilindro da justiça a brunir-lhes a grandeza, e para que os humilhados tenham ainda em vida a desforra que merecem. Mas o homem dura pouco demais para poder assistir ao espectáculo inteiro da comédia de que também é comparsa. Tem de nomear representantes até para comerem os frutos das próprias árvores que planta. De maneira que eu delego na História um vómito azedo sobre isto.

Que Tristeza Isto de a Gente Escrever

Que tristeza isto de a gente escrever! Secos como paus na vida, e sai-nos depois a ternura pelo bico da pena! Comigo é assim. E como ninguém me lê—ninguém dos que eu mais desejava que recebessem ternura de mim (minha Mãe, meu Pai, minha Irmã, uns pobres amigos rudes que tenho na minha terra e uns infelizes que encontro por este mundo) —, fica tudo em letra morta. Hoje todo eu fui uma sede ardente de abraçar um infeliz que calcorreava às apalpadelas as ruas escaroladas da Nazaré. Um dia como uma estrela, aquela maravilha ali para se ver, e o desgraçado cego de nascença! Mas o abraço saiu-me aqui, a tinta.

É Impossível que o Tempo Actual não Seja o Amanhecer doutra Era

É impossível que o tempo actual não seja o amanhecer doutra era, onde os homens signifiquem apenas um instinto às ordens da primeira solicitação. Tudo quanto era coerência, dignidade, hombridade, respeito humano, foi-se. Os dois ou três casos pessoais que conheço do século passado, levam-me a concluir que era uma gente naturalmente cheia de limitações, mas digna, direita, capaz de repetir no fim da vida a palavra com que se comprometera no início dela. Além disso heróica nas suas dores, sofrendo-as ao mesmo tempo com a tristeza do animal e a grandeza da pessoa. Agora é esta ferocidade que se vê, esta coragem que não dá para deixar abrir um panarício ou parir um filho sem anestesia, esta tartufice, que a gente chega a perguntar que diferença haverá entre uma humanidade que é daqui, dali, de acolá, conforme a brisa, e uma colónia de bichos que sentem a humidade ou o cheiro do alimento de certo lado, e não têm mais nenhuma hesitação nem mais nenhum entrave.

Esta Prosa Travada

Põe-se a gente a ler estes Gides, estes Munthes, estes Malraux. E é sempre a mesma sensação de plenitude. Sempre a mesma sensação de que, depois daquilo, não vale a pena escrever uma palavra, de mais a mais nesta língua de que o diabo ainda se serve para falar à avó… Mas depois vem a revolta. Esta impotente revolta de todo o verdadeiro escritor português que começou por nascer atrás duma fraga e acaba por gastar a vida em Paio Pires, amanuense de secretaria. Metessem no braço dum Gide uma manga de alpaca, e eu queria ver… Então um homem nasce em Paris ou numa terra lavada da Suécia, tanto faz, mestres logo à beira do berço, todas as civilizações na biblioteca do pai, uma vida inteira pelo mundo além, e aqueles neurónios, e aqueles sentidos não hão-de reagir?! O mais bronco ser humano, quando fala com um Wilde, ouviu pelo menos falar o autor do De Profundis. Evidentemente é preciso mais alguma coisa do que ir à China e ter certa experiência para escrever A Condição Humana. Mas, sem um homem andar de avião, como há-de um homem ganhar perspectivas de pássaro e falar de poços de ar?!
…E a gente não tem outro remédio senão gastar as horas a fabricar esta prosa travada,

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Desejar Aplausos

Desejar aplausos em arte é mais uma necessidade do que uma vaidade. É sentir que se é necessário, que nos querem. Não há nada mais esterilizante do que estar o dia inteiro no consultório à espera de doentes que nos passam à porta e vão à consulta do vizinho. Escrever para a posteridade não consola nem estimula ninguém. A legítima oração de todo o artista, quer queiram, quer não, tem de ser esta: dai-nos, Senhor, um pouco de glória em vida.

A Minha Luta

A minha luta é para encontrar o centro, o núcleo de toda uma infinidade de justificações, que superficialmente parecem satisfazer-me e são, afinal, folhas caducas do meu tronco. Determinar, numa palavra, que causa última me conduz, que força polariza os meus actos. Mas estou longe dessa descoberta. Eliminei o divino, porque era divino e eu sou humano; superei o pecado, porque viver sem pecado era um absurdo moral; e consegui perceber que a vida não é trágica por estar balizada pelo nascimento e pela morte, que são condições de existência e não condenações dela. Contudo, nada resolvi. Continua a escapar-me das mãos a sombra de um fantasma paradoxal. Uma sombra que é uma pura alucinação dos sentidos, que sabem que apenas o real lhes merece crédito, e, sobretudo, da razão, que sabe que a única consciência do mundo é ela própria, princípio e fim de si mesma.

Como é Difícil Ser Natural

É curioso como é difícil ser natural. Como a gente está sempre pronta a vestir a casaca das ideias, sem a humildade de se mostrar em camisa, na intimidade simples e humana da estupidez ou mesmo da indiferença. Fiz agora um grande esforço para dizer coisas brilhantes da guerra futura, da harmonia dos povos, da próxima crise. E, afinal de contas, era em camisa que eu devia continuar quando a visita chegou. No fundo, não disse nada de novo, não fiquei mais do que sou, não mudei o curso da vida. Fui apenas ridículo. Se não aos olhos do interlocutor, que disse no fim que gostou muito de me ouvir, pelo menos aos meus, o que ainda é mais penoso e mais trágico.

É uma Tolice Desculpar um Falhado

É uma tolice desculpar um falhado com argumentos de meio, época, saúde, idade, etc. O verdadeiro triunfador cria as condições da sua realização. Que se importa a gente com as doenças de Beethoven, e que pesam elas na sua obra? A natureza, quando dá génio, dá forças, tempo e coragem para vencer todos os obstáculos que o não deixem desabrochar. Não há malogrados. O único argumento a favor da sua existência é a idade. Ora na idade de malogrados morreram Keats, Cesário e Rafael…
Construir uma vida e uma obra parece ter sido sempre a façanha dos grandes. E se Goethe precisou de oitenta anos para se cumprir, Shelley pediu um prazo mais curto à natureza. O que tinha a dizer, dizia-se mais depressa…

Os Artistas Verdadeiros não Têm Ideologia

Dia entre pescadores. Eles a pescarem sardinha para a fome orgânica do corpo, e eu a pescar imagens para uma necessidade igual do espírito. Tisnados de saúde, os homens olham-me; e eu, amarelo de doença, olho-os também. Certamente que se julgam mais justificados do que eu, e que o mundo inteiro lhes dá razão. Mas da mesma maneira que eles, sem que ninguém lhes peça sardinha, se metem às ondas, também eu, sem que ninguém me peça poesia, me lanço a este mar da criação. Há uma coisa que nenhuma ideologia pode tirar aos artistas verdadeiros: é a sua consciência de que são tão fundamentais à vida como o pão. Podem acusá-los de servirem esta ou aquela classe. Pura calúnia. É o mesmo que dizer que uma flor serve a princesa que a cheira. O mundo não pode viver sem flores, e por isso elas nascem e desabrocham. Se olhos menos avisados passam por elas e as não podem ver, a traição não é delas, mas dos olhos, ou de quem os mantém cegos e incultos.

Um Autêntico Sonho de Amor

Orgulho, vaidade, despeito, rancor, tudo passa, se verdadeiramente o homem tem dentro de si um autêntico sonho de amor. Essas pequenas misérias são fatais apenas no começo, na puberdade, quando se olha uma janela e se desflora quem está lá dentro. Depois, não. Depois, sofre-se é pelo homem, é pela estupidez colectiva, é por não se poder continuar alegremente num mundo povoado, e se desejar um deserto de asceta. O ascetismo é a desumanização, é o adeus à vida, e é duro ser uma espécie de fantasma da cultura cercado de areias.

Combater é uma Diminuição

Combater é, em termos absolutos, uma diminuição. O homem, quer defenda a pátria, quer defenda as ideias, desde que passa os dias aos tiros ao vizinho, mesmo que o vizinho seja o monstro dos monstros, está a perder grandeza. Sempre que por qualquer motivo a razão passou a servir a paixão, houve um apoucamento do espirito, e é difícil que o espírito se salve num processo onde ele entra diminuído. Mas quando numa comunidade alguém endoidece e desata a ferir a torto e a direito, é preciso dominar o possesso de qualquer forma, e a guerra é fatal. Então, embora sabendo que vai empobrecer a sua alma, o homem normal começa a lutar, e só a morte ou o triunfo o podem fazer parar. É trágico, mas é natural. O que é contra todas as leis da vida é ficar ao lado da contenda como espectador. Sendo uma diminuição combater, é uma traição sem nome lavar as mãos do conflito, e passar as horas de binóculo assestado a contemplar a desgraça do alto dum monte. Assim é que nada se salva. Fica-se homem sem qualquer sentido, manequim vestido de gente, coisa que não tem personalidade. Porque nem se representa a inteligência,

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Somos Cidadãos Sem Laços de Cidadania

É escusado. Em nenhuma área do comportamento social conseguimos encontrar um denominador comum que nos torne a convivência harmoniosa. Procedemos em todos os planos da vida colectiva como figadais adversários. Guerreamo-nos na política, na literatura, no comércio e na indústria. Onde estão dois portugueses estão dois concorrentes hostis à Presidência da República, à chefia dum partido, à gerência dum banco, ao comando de uma corporação de bombeiros. Não somos capazes de reconhecer no vizinho o talento que nos falta, as virtudes de que carecemos. Diante de cada sucesso alheio ficamos transtornados. E vingamo-nos na sátira, na mordacidade, na maledicência. Nas cidades ou nas aldeias, por fás e por nefas, não há ninguém sem alcunha, a todos é colado um rabo-leva pejorativo. Quem quiser conhecer a natureza do nosso relacionamento, leia as polémicas que travámos ao longo dos tempos. São reveladoras. A celebrada carta de Eça a Camilo ou a também conhecida deste ao conselheiro Forjaz de Sampaio dão a medida exacta da verrina em que nos comprazemos no trato diário. Gregariamente, somos um somatório de cidadãos sem laços de cidadania.

A Maior Desgraça da Vida

A maior desgraça da vida, vistas bem as coisas, acaba por não ser a morte. Salvo aqueles casos catastróficos, que sob o ponto de vista do aniquilamento são uma perfeita maravilha, morre-se quando esta coisa que se chama corpo, por uma razão ou por outra, está podre. Quando, afinal, a ele próprio já lhe não apetece viver. A desgraça verdadeira é esta de nós andarmos aqui a namorar o céu, a pisar a terra, a investir contra o mar — e nem o céu, nem a terra, nem o mar saberem sequer que a gente existe.

O Adoçamento da Pílula Vocabular

É curioso verificar através da língua — espelho fiel de cada sociedade e de cada época — como em certos aspectos essenciais da vida não houve práticamente progresso nenhum, consistindo tudo quanto se fez num puro e vazio eufemismo de designação. Escravo, servo, criado, empregado, assalariado … ; demoníaco, possesso, maluco, doido, doente, nevrosado…

Mísera Condição a de um Artista

Peguei hoje por acaso num livro meu. Abri, comecei a ler, mas ao cabo de duas páginas desisti. Era tal a sensação de inacabado, de provisório e de rudimentar que tudo aquilo me dava, que fugi de mim próprio. Mísera condição a de um artista! Os outros, os vulgares, como homens, em relação à vida temporal, têm pelo menos esta piedade do tempo: o nivelamento de todas as horas, o esquecimento brumoso dos trágicos relevos do caminho andado. O pobre do poeta ou do escritor, esse vai deixando em cada passo a verónica da sua imaturação, da sua gaguez, — sem poder ao fim, quando do alto cuida ver o horizonte com maior lonjura, dar uma cor mais funda e mais significativa aos toscos painéis que pintou outrora.

As Modas e os Ideais

As ideias gerais de qualquer período são, como coisa em si, em tudo respeitáveis e legítimas. São as ideias de então, e nada autoriza a dizer em absoluto que o pensamento do século XVII superava o do século XVIII, ou vice-versa. Como já se usaram saias de balão, usam-se agora outras modas. Ora as saias de balão, em relação ao tempo respectivo, eram perfeitamente correctas e de bom gosto. Mas basta a gente não ver cada coisa integrada no clima que a motivou, para que a sua aparência se torne ridícula e detestável. E por isso tão horrível é para uma senhora que usa saia rodada uma saia travadinha, como o contrário. E evidente que semelhantes bizantinices nada dizem a uma dama da renascença, imunizada como está do contingente pela consumação dos anos. Mas poderá quem respira ainda sublimar-se a ponto de perder o pé na vida? Certo que não. Todos nós temos visto homens de noventa anos morrer aos vivas a determinada Patuleia que os fez vibrar.

O Cinismo dos Valores

Cada vez mais desesperado. Olho, olho, e só vejo negrura à minha volta. Fé? Evidentemente… Enquanto há vida, há esperança — lá diz o outro. Mas, francamente: fé em quê? Num mundo que almoça valores, janta valores, ceia valores, e os degrada cinicamente, sem qualquer estremecimento da consciência? Peçam-me tudo, menos que tape os olhos. Bem basta quando a terra mos cobrir! — Ah! mas a humanidade acaba por encontrar o seu verdadeiro caminho — dizem-me duas células ingénuas do entendimento. E eu respondo-lhes assim : Não, o homem não tem caminhos ideais e caminhos de ocasião. O homem tem os caminhos que anda. Ora este senhor, aqui há tempos, passou três séculos a correr atrás dum mito que se resumia em queimar, expulsar e perseguir uns outros homens, cujo pecado era este: saber filosofia, medicina, física, astronomia, religião, comércio — coisas que já nessa época eram dignas e respeitáveis.