São raros os que aderem ao ritmo. Uns nascem mortos, outros póstumos.
Passagens de Casimiro de Brito
81 resultadosSábios, cheios de que sabedoria? Roídos por ela. Não sabem nada.
As verdades são amargas e bebem-se gota a gota. Mas a mentira, que nos lisonjeia como se fôssemos o sal da terra, engolimo-la às golfadas.
O poder dos outros não nos oprime mais do que o exercício do poder próprio. Falsos poderes.
Se os outros me abandonam é porque devo estar a aproximar-me do essencial.
Tal a Vida
Em declive trepamos pela nuvem
dos dias — em declive circundamos
obscuros cristais
transportados no sangue— e somos e
levantamos
as cores primitivas da fonte a luz
que resvala corpo a corpo
a semente sazonada de quem roubou
o fogo — em declive canto
a ternura diluída a luz reflectida
neste muro onde vejo
a secreção da fala onde ouço
um caminho de metáforas: tal
a vida —
Cessa o desejo quando o muro se abre? Tanta imaturidade.
Estar no Mundo
Ao corpo colados a silenciosas
colunas de sal pavimentados eis os muros
paralelos eis as rápidas deformações da
linguagem (cálido ascetismo)
de quem arde por dentro — estar no mundo
é teu caminho estar na cólera
lavrada
e sobre si mesma dobrada e a guerra
mastigar a morte seca a subalimentada
explosão do corpo deformações suicídio
quotidiano — tal a poesia
se reflecte na luz a erosão do poema
o apodrece e movimenta— cinza mineral
entre restos de música e pão —
O peso do pensamento (uma teia de mitos) só o sentes quando ele nomeia a terra frágil do sofrimento. Um corpo que seja também o teu corpo.
Raramente leio jornais. O que dizem ter acontecido ontem já aconteceu há muito tempo.
Triunfo? Coisa que não há – sequer o triunfo da morte – neste mundo em que tudo flui.
Amar-te é aceitar que já não és a mesma, que todos os dias te afastas por caminhos que não conheço mas que não acabas nunca.
Ideia clara, ideia morta.
Bela, a forma do vaso. Mas é no seu vazio que se conserva o vinho.
Ainda que a verdade estivesse sentada não deixaria de ser flutuação.
Apenas a consciência da mortalidade pode conduzir à convivência da imortalidade, à aceitação desprendida do trânsito da matéria.
A dignidade com que morrem os animais: não têm nada para deixar.
Nossa Memória
Nossa memória sempre foi a memória
dos monstros nosso enigmático testamento
de altas labaredas sempre foi
o caminho
devastado pelo sangue pela circuncisa memória
dos mortos pelo perfil
dos astros — nossa colorida volúpia
sempre foi dos monstros
a mais crua linguagem húmida fuga
desolada
através do tempo através do medo
de não sermos belos de não sabermos
esculpir na cinza o sopro
de tanta luz tão prostituída —
Um homem cai, desfigura-se, perde o peso e a glória. Mas levanta-se depois de cada queda e talvez já nem seja um homem, talvez seja essa a sua verdadeira ascese.
Poderei acaso consentir que as coisas – ou o desejo que tenha delas – me afastem de mim?