Se sou também o outro poderei deixar de me sentir responsável pelo mal que «me» fazem?
Passagens de Casimiro de Brito
81 resultadosPoeta como Tu, Irmão
Não sou mais poeta do que tu, irmão!
Tu cavas na terra a semente da vida,
eu cavo na vida a semente da libertação.Somos partes perdidas dum só
que a razão de ser das coisas
separou. Não sou mais poeta do que tu, irmão.
A mãe que te gerou a mim me gerou —
não foi ela quem nos trocou
as mãos, a voz do coração.Abandona um pouco a charrua, arranca
da terra os olhos cansados, e limpa
o sujo da cara ao sujo das mãos — onde
os calos são um só e as rugas da morte
caminhos cobertos de pó.E olha
na direcção do meu braço cansado, sem
músculos quadrados
nem merda nas unhas, mas que te aponta
o mundo onde as raízes do dia, a luta, o trabalho
reclamam suor
mas não te roubam o pão.
Arranca os olhos da terra, irmão!
Olhasses tu o mundo da perspectiva da rã ou da relva e serias tão humilde e discreto como elas.
Há mais realidade no vazio, na cerimónia em que se tece o vazio, do que na história.
Apodrece na posse o que floresce no desejo.
Acreditar em mim, no meu clã, é pura tolice. Se até a pedra em que me sento diante do mar é devorada pelo vento!
A paz só a conhece quem sofreu todos os desastres. O que me cabe, depois de alguns desastres, é apenas o caminho arenoso da paz. Este momento.
São raros os que aderem ao ritmo. Uns nascem mortos, outros póstumos.
Sábios, cheios de que sabedoria? Roídos por ela. Não sabem nada.
As verdades são amargas e bebem-se gota a gota. Mas a mentira, que nos lisonjeia como se fôssemos o sal da terra, engolimo-la às golfadas.
O poder dos outros não nos oprime mais do que o exercício do poder próprio. Falsos poderes.
Se os outros me abandonam é porque devo estar a aproximar-me do essencial.
Tal a Vida
Em declive trepamos pela nuvem
dos dias — em declive circundamos
obscuros cristais
transportados no sangue— e somos e
levantamos
as cores primitivas da fonte a luz
que resvala corpo a corpo
a semente sazonada de quem roubou
o fogo — em declive canto
a ternura diluída a luz reflectida
neste muro onde vejo
a secreção da fala onde ouço
um caminho de metáforas: tal
a vida —
Cessa o desejo quando o muro se abre? Tanta imaturidade.
Estar no Mundo
Ao corpo colados a silenciosas
colunas de sal pavimentados eis os muros
paralelos eis as rápidas deformações da
linguagem (cálido ascetismo)
de quem arde por dentro — estar no mundo
é teu caminho estar na cólera
lavrada
e sobre si mesma dobrada e a guerra
mastigar a morte seca a subalimentada
explosão do corpo deformações suicídio
quotidiano — tal a poesia
se reflecte na luz a erosão do poema
o apodrece e movimenta— cinza mineral
entre restos de música e pão —
O peso do pensamento (uma teia de mitos) só o sentes quando ele nomeia a terra frágil do sofrimento. Um corpo que seja também o teu corpo.
Raramente leio jornais. O que dizem ter acontecido ontem já aconteceu há muito tempo.
Triunfo? Coisa que não há – sequer o triunfo da morte – neste mundo em que tudo flui.
Amar-te é aceitar que já não és a mesma, que todos os dias te afastas por caminhos que não conheço mas que não acabas nunca.
Ideia clara, ideia morta.