Passagens de CecĂ­lia Meireles

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Frases, pensamentos e outras passagens de CecĂ­lia Meireles para ler e compartilhar. Os melhores escritores estĂŁo em Poetris.

Minhas mĂŁos ainda estĂŁo molhadas do azul das ondas entreabertas e a cor que escorre dos meus dedos, colore as areias desertas…

Sem Corpo Nenhum

Sem corpo nenhum,
como te hei de amar?
— Minha alma, minha alma,
tu mesma escolheste
esse doce mal!

Sem palavra alguma,
como o hei de saber?
— Minha alma, minha alma,
tu mesma desejas
o que nĂŁo se vĂȘ!

Nenhuma esperança
me dĂĄs, nem te dou:
— Minha alma, minha alma,
eis toda a conquista
do mais longo amor!

Encostei-me a ti, sabendo que eras somente onda. Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti. Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino, frĂĄgil, Fiquei sem poder chorar quando caĂ­.

A Amiga Deixada

Antiga
cantiga
da amiga
deixada.

Musgo da piscina,
de uma ĂĄgua tĂŁo fina,
sobre a qual se inclina
a lua exilada.

Antiga
cantiga
da amiga
chamada.

Chegara tĂŁo perto!
Mas tinha, decerto,
seu rosto encoberto…
Cantava — mais nada.

Antiga
cantiga
da amiga
chegada.

PĂ©rola caĂ­da
na praia da vida:
primeiro, perdida
e depois — quebrada.

Antiga
cantiga
da amiga
calada.

Partiu como vinha,
leve, alta, sozinha,
— giro de andorinha
na mĂŁo da alvorada.

Antiga
cantiga
da amiga
deixada.

A minha infĂąncia de menina sozinha de-me duas coisas que parecem negativas, e, foram sempre positivas para mim:silĂȘncio e solidĂŁo.

Personagem

Teu nome Ă© quase indiferente
e nem teu rosto jĂĄ me inquieta.
A arte de amar Ă© exactamente
a de se ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o prĂłprio amor que por ti sinto:
Ă©s a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
Ă© um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto Ă© que pensa
o olhar de todas as saudades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silĂȘncio, obscuro, disperso.

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existĂȘncia,
tudo – o espaço evita e consome:
e eu sĂł conheço a tua ausĂȘncia.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.

Atitude

Minha esperança perdeu seu nome…
Fechei meu sonho, para chamĂĄ-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.

O Ășltimo passo do destino
pararĂĄ sem forma funesta,
e a noite oscilarĂĄ como um dourado sino
derramando flores de festa.

Meus olhos estarĂŁo sobre espelhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.
E um campo de estrelas irĂĄ brotando
atrås das lembranças ardentes.

Criança

Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, — e resiste,

Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e nĂŁo sabe mais o que sente…

Cabecinha boa de menino mudo
que nĂŁo teve nada, que nĂŁo pediu nada,
pelo medo de perder tudo.

Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a ĂĄgua do mundo
para mirar seu desencanto.

Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que nĂŁo possuiria.

Eu não dei por esta mudança Tão simples, tão certa, tão fåcil. Em que espelho Ficou perdida A minha face?

O Que Amamos EstĂĄ Sempre Longe de NĂłs

O que amamos estĂĄ sempre longe de nĂłs:
e longe mesmo do que amamos – que nĂŁo sabe
de onde vem, aonde vai nosso impulso de amor.

O que amamos estĂĄ como a flor na semente,
entendido com medo e inquietude, talvez
sĂł para em nossa morte estar durando sempre.

Como as ervas do chĂŁo, como as ondas do mar,
os acasos se vĂŁo cumprindo e vĂŁo cessando.
Mas, sem acaso, o amor lĂ­mpido e exacto jaz.

NĂŁo necessita nada o que em si tudo ordena:
cuja tristeza unicamente pode ser
o equĂ­voco do tempo, os jogos da cegueira

com setas negras na escuridĂŁo.

O Tempo Seca o Amor

O tempo seca a beleza,
seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
desunido para sempre
como as areias nas ĂĄguas.

O tempo seca a saudade,
seca as lembranças e as lågrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio
como estas conchas das praias.

O tempo seca o desejo
e suas velhas batalhas.
Seca o frĂĄgil arabesco,
vestĂ­gio do musgo humano,
na densa turfa mortuĂĄria.

Esperarei pelo tempo
com suas conquistas ĂĄridas.
Esperarei que te seque,
nĂŁo na terra, Amor-Perfeito,
num tempo depois das almas.

HĂĄ uma doce luz no silĂȘncio, e a dor Ă© de origem divina. Permita que eu volte o meu rosto para um cĂ©u maior que este mundo, e aprenda a ser dĂłcil no sonho como as estrelas no seu rumo.

Recado aos Amigos Distantes

Meus companheiros amados,
nĂŁo vos espero nem chamo:
porque vou para outros lados.
Mas Ă© certo que vos amo.

Nem sempre os que estĂŁo mais perto
fazem melhor companhia.
Mesmo com sol encoberto,
todos sabem quando Ă© dia.

Pelo vosso campo imenso,
vou cortando meus atalhos.
Por vosso amor Ă© que penso
e me dou tantos trabalhos.

NĂŁo condeneis, por enquanto,
minha rebelde maneira.
Para libertar-me tanto,
fico vossa prisioneira.

Por mais que longe pareça,
ides na minha lembrança,
ides na minha cabeça,
valeis a minha Esperança.

A primavera chegarĂĄ, mesmo que ninguĂ©m mais saiba seu nome, nem acredite no calendĂĄrio, nem possua jardim para recebĂȘ-la.