Quando penso em vocĂȘ, fecho os olhos de saudade.
Passagens de CecĂlia Meireles
133 resultadosMinhas mĂŁos ainda estĂŁo molhadas do azul das ondas entreabertas e a cor que escorre dos meus dedos, colore as areias desertas…
Sem Corpo Nenhum
Sem corpo nenhum,
como te hei de amar?
â Minha alma, minha alma,
tu mesma escolheste
esse doce mal!Sem palavra alguma,
como o hei de saber?
â Minha alma, minha alma,
tu mesma desejas
o que nĂŁo se vĂȘ!Nenhuma esperança
me dĂĄs, nem te dou:
â Minha alma, minha alma,
eis toda a conquista
do mais longo amor!
Para me refazer volto ao meu estado de fresca realidade, mal existo e se existo Ă© com delicado cuidado.
Encostei-me a ti, sabendo que eras somente onda. Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti. Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino, frĂĄgil, Fiquei sem poder chorar quando caĂ.
A Amiga Deixada
Antiga
cantiga
da amiga
deixada.Musgo da piscina,
de uma ĂĄgua tĂŁo fina,
sobre a qual se inclina
a lua exilada.Antiga
cantiga
da amiga
chamada.Chegara tĂŁo perto!
Mas tinha, decerto,
seu rosto encoberto…
Cantava â mais nada.Antiga
cantiga
da amiga
chegada.PĂ©rola caĂda
na praia da vida:
primeiro, perdida
e depois â quebrada.Antiga
cantiga
da amiga
calada.Partiu como vinha,
leve, alta, sozinha,
â giro de andorinha
na mĂŁo da alvorada.Antiga
cantiga
da amiga
deixada.
A minha infĂąncia de menina sozinha de-me duas coisas que parecem negativas, e, foram sempre positivas para mim:silĂȘncio e solidĂŁo.
Personagem
Teu nome Ă© quase indiferente
e nem teu rosto jĂĄ me inquieta.
A arte de amar Ă© exactamente
a de se ser poeta.Para pensar em ti, me basta
o prĂłprio amor que por ti sinto:
Ă©s a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.O lugar da tua presença
Ă© um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto Ă© que pensa
o olhar de todas as saudades.Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silĂȘncio, obscuro, disperso.Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existĂȘncia,
tudo – o espaço evita e consome:
e eu sĂł conheço a tua ausĂȘncia.Eu sĂł conheço o que nĂŁo vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.
Atitude
Minha esperança perdeu seu nome…
Fechei meu sonho, para chamĂĄ-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.O Ășltimo passo do destino
pararĂĄ sem forma funesta,
e a noite oscilarĂĄ como um dourado sino
derramando flores de festa.Meus olhos estarĂŁo sobre espelhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.
E um campo de estrelas irĂĄ brotando
atrås das lembranças ardentes.
Criança
Cabecinha boa de menino triste,
de menino triste que sofre sozinho,
que sozinho sofre, â e resiste,Cabecinha boa de menino ausente,
que de sofrer tanto se fez pensativo,
e nĂŁo sabe mais o que sente…Cabecinha boa de menino mudo
que nĂŁo teve nada, que nĂŁo pediu nada,
pelo medo de perder tudo.Cabecinha boa de menino santo
que do alto se inclina sobre a ĂĄgua do mundo
para mirar seu desencanto.Para ver passar numa onda lenta e fria
a estrela perdida da felicidade
que soube que nĂŁo possuiria.
Eu não dei por esta mudança Tão simples, tão certa, tão fåcil. Em que espelho Ficou perdida A minha face?
O Que Amamos EstĂĄ Sempre Longe de NĂłs
O que amamos estĂĄ sempre longe de nĂłs:
e longe mesmo do que amamos – que nĂŁo sabe
de onde vem, aonde vai nosso impulso de amor.O que amamos estĂĄ como a flor na semente,
entendido com medo e inquietude, talvez
sĂł para em nossa morte estar durando sempre.Como as ervas do chĂŁo, como as ondas do mar,
os acasos se vĂŁo cumprindo e vĂŁo cessando.
Mas, sem acaso, o amor lĂmpido e exacto jaz.NĂŁo necessita nada o que em si tudo ordena:
cuja tristeza unicamente pode ser
o equĂvoco do tempo, os jogos da cegueiracom setas negras na escuridĂŁo.
O Tempo Seca o Amor
O tempo seca a beleza,
seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
desunido para sempre
como as areias nas ĂĄguas.O tempo seca a saudade,
seca as lembranças e as lågrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio
como estas conchas das praias.O tempo seca o desejo
e suas velhas batalhas.
Seca o frĂĄgil arabesco,
vestĂgio do musgo humano,
na densa turfa mortuĂĄria.Esperarei pelo tempo
com suas conquistas ĂĄridas.
Esperarei que te seque,
nĂŁo na terra, Amor-Perfeito,
num tempo depois das almas.
HĂĄ uma doce luz no silĂȘncio, e a dor Ă© de origem divina. Permita que eu volte o meu rosto para um cĂ©u maior que este mundo, e aprenda a ser dĂłcil no sonho como as estrelas no seu rumo.
Recado aos Amigos Distantes
Meus companheiros amados,
nĂŁo vos espero nem chamo:
porque vou para outros lados.
Mas Ă© certo que vos amo.Nem sempre os que estĂŁo mais perto
fazem melhor companhia.
Mesmo com sol encoberto,
todos sabem quando Ă© dia.Pelo vosso campo imenso,
vou cortando meus atalhos.
Por vosso amor Ă© que penso
e me dou tantos trabalhos.NĂŁo condeneis, por enquanto,
minha rebelde maneira.
Para libertar-me tanto,
fico vossa prisioneira.Por mais que longe pareça,
ides na minha lembrança,
ides na minha cabeça,
valeis a minha Esperança.
Também é ser, deixar de ser assim.
Eu deixo aroma até nos meus espinhos, ao longe, o vento vai falando de mim.
A primavera chegarĂĄ, mesmo que ninguĂ©m mais saiba seu nome, nem acredite no calendĂĄrio, nem possua jardim para recebĂȘ-la.
Quem falou de primavera sem ter visto seu sorriso, falou sem saber o que era.
De longe te hei de amar- da tranquila distĂąncia em que o amor Ă© saudade e o desejo, constĂąncia.