O Homem é o Animal Menos Preparado
A capacidade do homem para o pensamento abstracto, que parece faltar à maioria dos outros mamíferos, conferiu-lhe sem dúvida o seu actual domínio sobre a superfície da Terra – um domínio disputado apenas por centenas de milhares de tipos de insectos e organismos microscópicos. Este pensamento abstracto é o responsável pela sua sensação de superioridade e pelo que, sob esta sensação, corresponde a uma certa medida de realidade, pelo menos dentro de estreitos limites. Mas o que é frequentemente subestimado é o facto de que a capacidade de desempenhar um acto não é, de forma alguma, sinónima de seu exercício salubre. É fácil observar que a maior parte do pensamento do homem é estúpida, sem sentido e injuriosa para ele. Na realidade, de todos os animais, ele parece o menos preparado para tirar conclusões apropriadas nas questões que afectam mais desesperadamente o seu bem-estar.
Tente imaginar um rato, no universo das ideias dos ratos, chegando a noções tão ocas de plausibilidade como, por exemplo, o Swedenborgianismo, a homeopatia ou a telepatia mental. O instinto natural do homem, de facto, nunca se dirige para o que é sólido e verdadeiro; prefere tudo que é especioso e falso. Se uma grande nação moderna se confrontar com dois problemas antagónicos – um deles baseado em argumentos prováveis e racionais,
Passagens sobre Corvos
33 resultadosA Humana Súmula
A Piedade deixaria de existir
Se não fizéssemos nós os Pobres de pedir;
E a Compaixão também acabaria
Se a todos, como nós, feliz chegasse o dia.E a paz se alcança com mútuo terror,
Até crescer o egoísmo do amor:
A Crueldade tece então a sua rede,
E lança seu isco, cuidadosa, adrede.Senta-se depois com temores sagrados,
E de lágrimas os chãos ficam regados;
A raiz da Humildade ali então se gera
Debaixo do seu pé, atenta, espera.Em breve sobre a cabeça se lhe estende
A sombra daquele Mistério que ofende;
É aí que Verme e Mosca se sustentam
Do Mistério que ambos acalentam.E o fruto que gera é o do Engano
Doce ao comer e tão malsano;
E o Corvo o seu ninho ali o faz
No mais espesso da sombra que lhe apraz.Todos os Deuses, quer da terra quer do mar,
P’la Natureza esta Árvore foram procurar;
Mas foi em vão esta procura insana,
Esta Árvore cresce só na Mente Humana.Tradução de Hélio Osvaldo Alves
Corvos a corvos, não se tiram os olhos.
Apocalipse
Porque a lua é branca e a noite
é simples anúncio da aurora;
e porque o mar é o mar apenas
e a fonte não canta nem chora;e porque o sal se decompõe
e são de água e carvão as rosas,
e a luz é simples vibração
que excita células nervosas;e porque o som fere os ouvidos
e o vento canta na harpa eólia;
e porque a terra gera os áspides
entre a papoula e magnólia;e porque o trem já vai partir
e o corvo nos diz never more;
e porque devemos sorrir
antes que o crepúsculo descore;e porque ontem já não existe
e o que há de vir não mais virá,
e porque estamos num balé
sobre o estopim da Bomba H:não marcharemos contra o muro
das lamentações, prantear
a frustração de tudo o que
sonhamos ousar, sem ousar.Títeres mudados em gnomos,
enfrentemos o Apocalipse
como pilotos da tormenta
entre o terremoto e o eclipse.Vamos dançar sobre o convés
enquanto o barco não aderna;
Responso
I
Num castelo deserto e solitário,
Toda de preto, às horas silenciosas,
Envolve-se nas pregas dum sudário
E chora como as grandes criminosas.Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas
Em que ela esconde as lágrimas singelas.II
É loura como as doces escocesas,
Duma beleza ideal, quase indecisa;
Circunda-se de luto e de tristezas
E excede a melancólica Artemisa.Fosse eu os seus vestidos afogados
E havia de escutar-lhe os seu pecados.III
Alta noite, os planetas argentados
Deslizam um olhar macio e vago
Nos seus olhos de pranto marejados
E nas águas mansíssimas do lago.Pudesse eu ser a Lua, a Lua terna,
E faria que a noite fosse eterna.IV
E os abutres e os corvos fazem giros
De roda das ameias e dos pegos,
E nas salas ressoam uns suspiros
Dolentes como as súplicas dos cegos.Fosse eu aquelas aves de pilhagem
E cercara-lhe a fronte, em homenagem.V
E ela vaga nas praias rumorosas,
Triste como as rainhas destronadas,
Os Amantes Obscuros
Nossos sentidos juntos fazem chama:
e as fantasias nossas vão soltar
os desejos desertos de quem ama
e em verso ou coração se quis tornar.Nossos sentidos são matéria prima
de um canto que é mais leve do que o ar;
o mundo todo não nos adivinha:
somos sombra sem luz, sequer luar.Que o corpo quebre a noite desolada,
que o corvo ceda a voz à escuridão:
mil luzes são o nome da amada;
quem se perdeu no verso é sem perdão.
A virtude, tal como os corvos, aninha-se nas ruínas.
Vítima Do Dualismo
Ser miserável dentre os miseráveis
– Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiosincrasias!Muito mais cedo do que o imagináveis
Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias!Psiquê biforme, o Céu e o Inferno absorvo…
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,Ceva-se em minha carne, como um corvo,
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!
O Homem Congrega Todas as Espécies de Animais
Há tão diversas espécies de homens como há diversas espécies de animais, e os homens são, em relação aos outros homens, o que as diferentes espécies de animais são entre si e em relação umas às outras. Quantos homens não vivem do sangue e da vida dos inocentes, uns como tigres, sempre ferozes e sempre cruéis, outros como leões, mantendo alguma aparência de generosidade, outros como ursos grosseiros e ávidos, outros como lobos arrebatadores e impiedosos, outros ainda como raposas, que vivem de habilidades e cujo ofício é enganar!
Quantos homens não se parecem com os cães! Destroem a sua espécie; caçam para o prazer de quem os alimenta; uns andam sempre atrás do dono; outros guardam-lhes a casa. Há lebréus de trela que vivem do seu mérito, que se destinam à guerra e possuem uma coragem cheia de nobreza, mas há também dogues irascíveis, cuja única qualidade é a fúria; há cães mais ou menos inúteis, que ladram frequentemente e por vezes mordem, e há até cães de jardineiro. Há macacos e macacas que agradam pelas suas maneiras, que têm espírito e que fazem sempre mal. Há pavões que só têm beleza, que desagradam pelo seu canto e que destroem os lugares que habitam.
Meditação Sobre os Poderes
Rubricavam os decretos, as folhas tristes
sobre a mesa dos seus poderes efémeros.
Queriam ser reis, czares, tantas coisas,
e rodeavam-se de pequenos corvos,
palradores e reverentes, dos que repetem:
és grande, ninguém te iguala, ninguém.
Repartiam entre si os tesouros e as dádivas,
murmurando forjadas confidências,
não amando ninguém, nada respeitando.
Encantavam-se com o eco liquefeito
das suas vozes comandando, decretando.
Banqueteavam-se com a pequenez
de tudo quanto julgavam ser grande,
com os quadros, com o fulgor novo-rico
das vénias e dos protocolos. Vinha a morte
e mostrava-lhes como tudo é fugaz
quando, humanamente, se está de passagem,
corpo em trânsito para lado nenhum.
Acabaram sempre a chorar sobre a miséria
dos seus títulos afundados na terra lamacenta.
A Génese de um Poema
A maior parte dos escritores, sobretudo os poetas, preferem deixar supor que compõem numa espécie de esplêndido frenesim, de extática intuição; literalmente, gelar-se-iam de terror à ideia de permitir ao público que desse uma espreitadela por detrás da cena para ver os laboriosos e incertos partos do pensamento, os verdadeiros planos compreendidos só no último minuto, os inúmeros balbucios de ideias que não alcançaram a maturidade da plena luz, as imaginações plenamente amadurecidas e, no entanto, rejeitadas pelo desespero de as levar a cabo, as opções e as rejeições longamente ponderadas, as tão difíceis emendas e acrescentas, numa palavra, as rodas e as empenas, as máquinas para mudança de cenário, as escadas e os alçapões, o vermelhão e os postiços que em 99% dos casos constituem os acessórios do histrião literário.
(…) No que a mim diz respeito, não compartilho da repugnância de que falei e nunca senti a mínima dificuldade em rememorar a marcha progressiva de todas as minhas obras. Escolho O Corvo por ser a mais conhecida. Proponho-me demonstrar claramente que nenhum pormenor da sua composição se pode explicar pelo acaso ou pela intuição, que a obra se desenvolveu, a par e passo, até à sua conclusão com a precisão e o rigor lógico de um problema matemático.
A censura poupa os corvos e persegue as pombas.
Mau corvo, mau ovo.