Gratidão
A minha gratidão te dá meus versos:
Meus versos, da lisonja não tocados,
Satélites de Amor, Amor seguindo
Co’as asas que lhes pôs benigna Fama,
Qual níveo bando de inocentes pombas,
Os lares vão saudar, propícios lares,
Que em doce recepção me contiveram
Incertos passos da Indigência errante;
Dos olhos vão ser lidos, que apiedara
A catástrofe acerba de meus dias,
Dos infortúnios meus o quadro triste;
Vão pousar-te nas mãos, nas mãos que foram
Tão dadivosas para o vate opresso,
Que o peso dos grilhões me aligeiraram,
Que sobre espinhos me esparziram flores,
Enquanto não recentes, vãos amigos,
Inúteis corações, volúvel turba
(A versos mais atenta que a suspiros)
No Letes mergulhou memórias minhas.
Amigos da Ventura e não de Elmano,
Aónio serviçal de vós me vinga;
Ao nome da Virtude o Vício core.Não sei se vens de heróis, se vens de grandes;
Não sei, meu benfeitor, se teus maiores
Foram cobertos, decorados foram
De purpúreos dosséis, de márcios loiros;
Sei que frequentas da Amizade o templo,
Que és grande,
Passagens de Manuel Maria Barbosa du Bocage
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De cerúleo gabão não bem coberto,
passeia em Santarém chuchado moço,
mantido, às vezes, de sucinto almoço,
de ceia casual, jantar incerto;dos esbrugados peitos quase aberto,
versos impinge por miúde e grosso;
e do que em frase vil chamam caroço,
se o que, é vox clamantis in deserto;pede às moças ternura, e dão-lhe motes;
que, tendo um coração como estalage,
vão nele acomodando a mil peixotes.Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,
cercado de um tropel de franchinotes?
– É o autor do soneto: – é o Bocage.
Nos Campos O Vilão Sem Susto Passa
Nos campos o vilão sem susto passa
inquieto na corte o nobre mora;
o que é ser infeliz aquele ignora,
este encontra nas pompas a desgraça;aquele canta e ri, não se embaraça
com essas coisas vãs que o mundo adora;
este (oh cega ambição!) mil vezes chora,
porque não acha bem que o satisfaça;aquele dorme em paz no chão deitado,
este no ebúrneo leito precioso
nutre, exaspera velador cuidado,triste, sai do palácio majestoso.
Se hás-de ser cortesão mas desgraçado,
anter ser camponês e venturoso.
Mas, ah tirano Amor! Ou cedo ou tarde
É forçoso aos mortais sofrer teu jugo;
Amor, tu és um mal que fere a todos:
Longa experiência contra ti não vale,
Ou Virtude, ou Razão, só vale a Morte.
Negra Fera, Que A Tudo As Garras Lanças
Negra fera, que a tudo as garras lanças,
Já murchaste, insensível a clamores,
Nas faces de Tirsália as rubras flores,
Em meu peito as viçosas esperanças.Monstro, que nunca em teus estragos cansas,
Vê as três Graças, vê os nus Amores
Como praguejam teus cruéis furores,
Ferindo os rostos, arrancando as tranças!Domicílio da noute, horror sagrado,
Onde jaz destruída a formosura,
Abre-te, dá lugar a um desgraçado.Eis desço, eis cinzas palpo… Ah, Morte dura!
Ah, Tirsália! Ah, meu bem, rosto adorado!
Torna, torna a fechar-te, ó sepultura!
Lusos Heróis, Cadáveres Cediços
Lusos heróis, cadáveres cediços,
Erguei-vos dentre o pó, sombras honradas,
Surgi, vinde exercer as mãos mirradas
Nestes vis, nestes cães, nestes mestiços.Vinde salvar destes pardais castiços
As searas de arroz, por vós ganhadas;
Mas ah! Poupai-lhe as filhas delicadas,
Que. Elas culpa não têm, têm mil feitiços.De pavor ante vós no chão se deite
Tanto fusco rajá, tanto nababo,
E as vossas ordens, trémulo, respeite.Vão para as várzeas, leve-os o Diabo;
Andem como os avós, sem mais enfeite
Que o langotim, diámetro do rabo.
Triste quem ama, cego quem se fia.
Tu, de quantos dragões o Inferno encerra,
És o pior, Inveja pestilente!
Morde a virtude, ao mérito faz guerra
Teu detestável, teu maligno dente.
Depois de Te Haver Criado, a Natureza Pasmou
A mãe, que em berço dourado
Pôs teu corpo cristalino,
É sup’rior ao Destino,
Depois de te haver criado.
Quando Amor, o Nume alado,
Tua infância acalentou,
Quando os teus dias fadou,
Minha Lília, minha amada,
A mãe ficou encantada,
A Natureza pasmou.Deve dar breve cuidado,
Motivar grande atenção,
A um Deus a criação,
Depois de te haver criado.
Deve de ser refinado
O engenho que ele mostrar
Desde o ponto em que criar;
Cuide nisto a omnipotência,
Porque, ao ver a sua essência,
A Natureza pasmou.Ao mesmo Céu não é dado
(Bem que tanto poder goza)
Criar coisa tão formosa
Depois de te haver criado.
Naquele instante dourado,
Em que teus dotes formou,
Apenas os completou,
Arengando-lhe o Destino,
Em um êxtase divino
A Natureza pasmou.O Céu nos tem outorgado
Quanto outorgar-nos podia;
O Céu que mais nos daria
Depois de te haver criado?
Ninfa, das Graças traslado,
Ninfa, de que escravo sou,
Jove em ti se enfeitiçou,
Basta, cega paixão, loucos amores;
Esqueçam-se os prazeres de algum dia,
Tão belos, tão duráveis como as flores.
Cede a Filosofia à Natureza
Tenho assaz conservado o rosto enxuto
Contra as iras do Fado omnipotente;
Assaz contigo, ó Sócrates, na mente,
À dor neguei das queixas o tributo.Sinto engelhar-se da constância o fruto,
Cai no meu coração nova semente;
Já me não vale um ânimo inocente;
Gritos da Natureza, eu vos escuto!Jazer mudo entre as garras da Amargura,
D’alma estóica aspirar à vã grandeza,
Quando orgulho não for, será loucura.No espírito maior sempre há fraqueza,
E, abafada no horror da desventura,
Cede a Filosofia à Natureza.
Nascemos para Amar
Nascemos para amar; a Humanidade
Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura.
Tu és doce atractivo, ó Formosura,
Que encanta, que seduz, que persuade.Enleia-se por gosto a liberdade;
E depois que a paixão na alma se apura,
Alguns então lhe chamam desventura,
Chamam-lhe alguns então felicidade.Qual se abisma nas lôbregas tristezas,
Qual em suaves júbilos discorre,
Com esperanças mil na ideia acesas.Amor ou desfalece, ou pára, ou corre:
E, segundo as diversas naturezas,
Um porfia, este esquece, aquele morre.
Ó Tranças De Que Amor Prisões Me Tece
Ó tranças de que Amor prisões me tece,
Ó mãos de neve, que regeis meu fado!
Ó tesouro! Ó mistério! Ó par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!Ó ledos olhos, cuja luz parece
Tênue raio de sol! Ó gesto amado,
De rosas e açucenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse!Ó lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!Ó perfeições! Ó dons encantadores!
De quem sois? Sois de Vênus? – É mentira;
Sois de Marília, sois dos meus amores.
De Amor os gozos são como o diamante,
Que, sem o engaste que tocar-lhe veda,
Perdera a polidez, perdera o brilho.
Eu Me Ausento de Ti, Meu Pátrio Sado
Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado,
Mansa corrente deleitos, amena,
Em cuja praia o nome de Filena
Mil vezes tenho escrito, e mil beijado:Nunca mais me verás entre o meu gado
Soprando a namorada e branda avena,
A cujo som descias mais serena,
Mais vagarosa para o mar salgado:Devo enfim manejar por lei da sorte
Cajados não, mortíferos alfanges
Nos campos do colérico Mavorte;E talvez entre impávidas falanges
Testemunhas farei da minha morte
Remotas margens, que humedece o Ganjes.
Nas paixões a razão nos desampara.
Soneto Ditado Na Agonia
Já Bocage não sou!… À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento…
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura;Conheço agora já quão vã figura,
Em prosa e verso fez meu louco intento:
Musa!… Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura.Eu me arrependo; a língua quasi fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:Outro Aretino fui… a santidade
Manchei!… Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!.
O Redentor Chorando
Se considero o triste abatimento
Em que me faz jazer minha desgraça,
A desesperação me despedaça,
No mesmo instante, o frágil sofrimento.Mas súbito me diz o pensamento,
Para aplacar-me a dor que me traspassa,
Que Este que trouxe ao mundo a Lei da Graça,
Teve num vil presepe o nascimento.Vejo na palha o Redentor chorando,
Ao lado a Mãe, prostrados os pastores,
A milagrosa estrela os reis guiando.Vejo-O morrer depois, ó pecadores,
Por nós, e fecho os olhos, adorando
Os castigos do Céu como favores.
De quantas cores se matiza o Fado!
Nem sempre o homem ri, nem sempre chora,
Mal com bem, bem com mal é temperado.
Morrer é pouco, é fácil; mas ter vida
Delirando de amor, sem fruto ardendo,
É padecer mil mortes, mil infernos.