O livro deve ser objecto e mercadoria para chegar às nossas mãos. Mas só somos donos desse objecto quando ele deixa de ser objecto e deixa de ser mercadoria. O livro só cumpre o seu destino quando transitamos de leitores para produtores do texto, quando tomamos posse dele como seus co-autores.
Passagens de Mia Couto
388 resultadosRirmos juntos é melhor do que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.
A riqueza é como o sal. Só serve para temperar.
O escritor é um ser que deve estar aberto a viajar por outras experiências, outras culturas, outras vidas. Deve estar disponível para se negar a si mesmo. Porque só assim ele viaja entre identidades. E é isso que um escritor é – um viajante de identidades, um contrabandista de almas. Não há escritor que não partilhe dessa condição: uma criatura de fronteira, alguém que vive junto à janela, essa janela que se abre para os territórios da interioridade.
Temos que o Saber Conquistar
Estou completamente cansado de pessoas que só pensam numa coisa: queixar-se e lamentar-se num ritual em que nos fabricamos mentalmente como vítimas. Choramos e lamentamos, lamentamos e choramos. Queixamo-nos até à náusea sobre o que os outros nos fizeram e continuam a fazer. E pensamos que o mundo nos deve qualquer coisa. Lamento dizer-vos que isto não passa de uma ilusão. Ninguém nos deve nada. Ninguém está disposto a abdicar daquilo que tem, com a justificação de que nós também queremos o mesmo. Se quisermos algo temos que o saber conquistar. Não podemos continuar a mendigar, meus irmãos e minhas irmãs.
As fotos são o contrário de nós: apagam-se quando recebem carícias.
A escrita é uma casa que eu visito, mas onde não quero morar. O que me instiga são as outras línguas e linguagens, sabedorias que ganhamos apenas se de nós mesmos nos soubermos apagar.
Mudar o Governo
Não se pode governar um país como se a política fosse um quintal e a economia fosse um bazar. Ao avaliar um regime de governação precisamos, no entanto, de ir mais fundo e saber se as questões não provêm do regime mas do sistema e a cultura que esse sistema vai gerando. Pode-se mudar o governo e tudo continuará igual se mantivermos intacto o sistema de fazer economia, o sistema que administra os recursos da nossa sociedade. Nós temos hoje gente com dinheiro. Isso em si mesmo não é mau. Mas esses endinheirados não são ricos. Ser rico é outra coisa. Ser rico é produzir emprego. Ser rico é produzir riqueza. Os nossos novos-ricos são quase sempre predadores, vivem da venda e revenda de recursos nacionais.
Afinal, culpar o governo ou o sistema e ficar apenas por aí é fácil. Alguém dizia que «governar é tão fácil que todos o sabem fazer até ao dia em que são governo». A verdade é que muitos dos problemas que nós vivemos resultam da falta de resposta nossa como cidadãos activos. Resulta de apenas reagirmos no limite quando não há outra resposta senão a violência cega. Grande parte dos problemas resulta de ficarmos calados quando podemos pensar e falar.
As ideias não nascem de uma base física, mas dos nossos encontros e desencontro da vida.
O silêncio não é a ausência da fala, é o dizer-se tudo sem nenhuma palavra.
A infância não é um tempo, não é uma idade, uma colecção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo.
A morte é uma corda que nos amarra as veias. O nó está lá desde que nascemos. O tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando pouco a pouco.
É verdade que as novas tecnologias não costuram os buracos da nossa roupa interior, mas elas ajudam a alterar as redes sociais em que nos fabricamos.
Sofro, afinal, a doença da poesia: sonho lugares em que nunca estive, acredito só no que não se pode provar.
A vida é a espera do que pode ser vivido.
Quanto mais um lugar é pequenito, maior o tamanho da obediência.
Há mulheres que são chuva, outras cacimbo. Essa tal Farida deve ser uma que vale a pena a gente se despentear com ela.
A lágrima nos universa, nela regressamos ao primeiro início. Aquela gotinha é, em nós, o umbigo do mundo. A lágrima plagia o oceano.
Eu quero a paz de pertencer a um só lugar, eu quero a tranquilidade de não dividir memórias. Ser todo de uma vida. E assim ter a certeza que morro de uma só única vez. Custa-me ir cumprindo tantas pequenas mortes, essas que apenas nós notamos, na íntima obscuridade de nós.
Esse desesperado suspiro dos corpos se amando é que faz uma mulher se transcender, aceitar em si a semente de um infinito ser.