Passagens de Mia Couto

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Pergunta-me

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

O maior inimigo do escritor pode ser a própria literatura. Pior que não escrever um livro, é escrevê-lo demasiadamente.

Fomos Deixando de Escutar

Me entristece o quanto fomos deixando de escutar. Deixámos de escutar as vozes que são diferentes, os silêncios que são diversos. E deixámos de escutar não porque nos rodeasse o silêncio. Ficámos surdos pelo excesso de palavras, ficámos autistas pelo excesso de informação. A natureza converteu-se em retórica, num emblema, num anúncio de televisão. Falamos dela, não a vivemos. A natureza, ela própria, tem que voltar a nascer. E quando voltar a nascer teremos que aceitar que a nossa natureza humana é não ter natureza nenhuma. Ou que, se calhar, fomos feitos para ter todas as naturezas.

Falei dos pecados da Biologia. Mas eu não trocaria esta janela por nenhuma outra. A Biologia ensinou-me coisas fundamentais. Uma delas foi a humildade. Esta nossa ciência me ajudou a entender outras linguagens, a fala das árvores, a fala dos que não falam. A Biologia me serviu de ponte para outros saberes. Com ela entendi a Vida como uma história, uma narrativa perpétua que se escreve não em letras mas em vidas.

A Biologia me alimentou a escrita literária como se fosse um desses velhos contadores não de histórias mas de sabedorias. E reconheci lições que já nos tinham sido passadas quando ainda não tínhamos sido dados à luz.

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A viagem acontece quando acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter casa.

Toda a estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é um fumo, leve demais para se prender na vigente realidade. Toda a verdade aspira a ser estória.

Antigamente o mato, tão vazio de gente, me fazia medo. Pensava, só podia viver nas pessoas, vizinho de gente. Agora, penso o contrário. Já quero voltar no lugar dos bichos. Tenho saudades de ser ninguém.

Sorte a dos que, deixando de ser humanos, se tornam feras. Infelizes os que matam a mando de outros e mais infelizes ainda os que matam sem ser a mando de ninguém. Desgraçados, enfim, os que, depois de matar, se olham ao espelho e ainda acreditam serem pessoas.

Quem não tem nada não chama inveja de ninguém. Melhor sentinela é não ter portas.

Solidão

Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso

Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou

Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo

Não podemos ter medo de não saber. O que devemos recear é o não termos inquietação para passarmos a saber.

Não existe pureza quando se fala da espécie humana. Não há economia actual que não se alicerce em trocas. Pois não há cultura humana que não se fundamente em profundas trocas de alma.

Os homens não gostam que as mulheres pensem em silêncio. Nascem-lhes nervosas suspeitas.