Esta Dor que me Faz Bem
As coisas falam comigo
uma linguagem secreta
que é minha, de mais ninguém.
Quem sente este cheiro antigo,
o cheiro da mala preta,
que era tua, minha mãe?Este cheiro de além-vida
e de indizível tristeza,
do tempo morto, esquecido…
Tão desbotada e puída
aquela fita escocesa
que enfeitava o teu vestido.Fala comigo e conversa,
na linguagem que eu entendo,
a tua velha gaveta,
a vida nela dispersa
chega à cama onde me estendo
num perfume de violeta.Vejo as tuas jóias falsas
que usavas todos os dias,
do princípio ao fim do ano,
e ainda oiço as tuas valsas,
minha mãe, e as melodias
que cantavas ao piano.Vejo brancos, decotados,
os teus sapatos de baile,
um broche em forma de lira,
saia aos folhos engomados
e sobre o vestido um xaile,
um xaile de Caxemira.Quantas voltas deu na vida
este álbum de retratos,
de veludo cor de tília?
Gente outrora conhecida,
quem lhe deu tantos maus tratos?
Poemas sobre Tristeza
99 resultadosDe la Musique
Ah, pouco a pouco, entre as árvores antigas,
A figura dela emerge e eu deixo de pensar…Pouco a pouco, da angústia de mim vou eu mesmo emergindo…
As duas figuras encontram-se na clareira ao pé do lago….
… As duas figuras sonhadas,
Porque isto foi só um raio de luar e uma tristeza minha,
E uma suposição de outra coisa,
E o resultado de existir…Verdadeiramente, ter-se-iam encontrado as duas figuras
Na clareira ao pé do lago?
( … Mas se não existem?…)
… Na clareira ao pé do lago?…
Mais Valera…
Baldadas, as tuas orações fervorosas,
vãs, as tuas vigílias sem cansaço,
inúteis, as tuas rugas que foram lágrimas, Mãe!
E são brancos os teus cabelos por ser negra a minha vida…Todos os amparos pedidos para os meus passos,
todas as claridades imploradas para os meus caminhos,
todas as fontes solicitadas para as minhas sedes,
todos os vergéis requeridos para as minhas fomes,
todas as pedras com musgo seco rogadas para o meu descanso,
— tudo foi trocado para a felicidade doutra Mãe
que não orou, talvez, fervorosamente,
nem vigiou noites e noites um berço, como estrela,
nem, Mãe, chorou as lágrimas que deixaram no teu rosto essa tristeza.Para mim veio este destino errante de poeta…
Comigo, a incerteza e frouxidão contínua de passos,
a escuridão em todos os caminhos inevitáveis,
a sede para que só há fontes secas,
a fome que nenhum fruto satisfaz,
as pedras ásperas onde o corpo não pode estender-se…Mãe, porque não me levaram os ciganos?
Ode aos Natais Esquecidos
Eu vinha, pé ante pé, em busca da pequena porta
que dava acesso aos mistérios da noite,
daquela noite em particular, por ser a mais terna
de todas as noites que a minha memória
era capaz de guardar, com letras e sons,
no seu bojo de coisas imateriais e imperecíveis.
Tinha comigo os cães e os retratos dos mortos,
a lembrança de outras noites e de outros dias,
os brinquedos cansados da solidão dos quartos,
os cadernos invadidos pêlos saberes inúteis.
E todos me diziam que era ainda muito cedo,
porque a meia-noite morava já dentro do sono,
no território dos anjos e dos outros seres alados,
hora inatingível a clamar pela nossa paciência,
meninos hirtos de olhos fixos na claridade
enganadora de uma árvore sem nome.Depois, o meu pai morreu e as minhas ilusões também.
Tudo se tornou gélido, esquivo e distante
como a tristeza de um fantasma confrontado
com a beleza da vida para sempre perdida.
Deixaram de me dar presentes e de dizer
que era o Menino Jesus que os trazia
para premiar a minha grandeza de alma,
Amor Místico
Quando a minha alma nasceu
Para onde olhou primeiro,
E viu tudo um nevoeiro,
Foi lá cima para o céu…
Que a alma nunca lhe passa
De ideia a fonte da graça!Em toda a ânsia de luz,
Em toda a ânsia de gozo,
Sempre aquele olhar ansioso
Nesse ideal de Jesus…
Nesse bem que não se exprime…
Êxtase de amor sublime!Olhava da solidão,
Onde se sentia presa,
Com a natural tristeza
Dos ferros de uma prisão…
À espera sempre da hora
Que lhe raiasse a aurora!Bem a chamavam de cá
Sempre os cuidados do dia;
Ela, que nunca os ouvia,
Olhava, mas para lá…
Donde ela mesmo viera,
Donde todo o bem se espera!Um dia (nem eu sei qual,
Que em suma foi isso há tanto!)
Vê com uns olhos de espanto
Romper-se a névoa geral;
E como um sol recortado
Nesse mar enevoado…E dentro desse clarão,
Como em círculo de prata,
Que imagem se lhe retrata,
Fosse verdade ou visão?
Retrato do Povo de Lisboa
É da torre mais alta do meu pranto
que eu canto este meu sangue este meu povo.
Dessa torre maior em que apenas sou grande
por me cantar de novo.Cantar como quem despe a ganga da tristeza
e põe a nu a espádua da saudade
chama que nasce e cresce e morre acesa
em plena liberdade.É da voz do meu povo uma criança
seminua nas docas de Lisboa
que eu ganho a minha voz
caldo verde sem esperança
laranja de humildade
amarga lança
até que a voz me doa.Mas nunca se dói só quem a cantar magoa
dói-me o Tejo vazio dói-me a miséria
apunhalada na garganta.
Dói-me o sangue vencido a nódoa negra
punhada no meu canto.
O que Me Dói não É
O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão…São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.
A Obra o Leva
Depois de havê-lo feito, a obra o leva
pela tarefa maior
em que quase de si e dela se desprenda
para ampliar somente a solidão.
Mas uma solidão em que tropeça
a linha, às vezes, a descrever-se com
aquela claridade de paciência
que a leva além de onde jamais andou.
Oscila, treme, timbre de tristeza
o espaço à volta. E o sítio aonde for
será cidade surdida de uma mesa
que ele fez longínqua. E ela o coroou.
Estrela da Tarde
Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca tardando-lhe o beijo morria.
Quando à boca da noite surgiste na tarde qual rosa tardia
Quando nós nos olhámos, tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos, unidos, ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia.
Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça
E o meu corpo te guarde.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria
Ou se és a tristeza.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza!Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram.
À Solidão
Solidão coroada de rosas, quem pudera
aprisionar teu corpo de sol e de harmonia;
estar dentro de ti toda esta primavera
de sangue, e folhas secas e de melancolia!Que palpitasse, em sonho, teu coração sonoro
sobre o meu coração sequioso de ideais;
minha palavra fosse uma palavra de ouro
de teus inesgotáveis e puros mananciais!Ai! Quem, iluminando a sombra alucinada
que de espinhos coroa minha pálida tristeza,
pudesse ser teu amor, oh deusa coroada
de rosas, solidão, — tu que és mãe da beleza!Tradução de José Bento
Tristissima
N’um paiz longe, secreto,
Lendaria ilha affastada,
Jaz todo o dia sentada
N’um throno de marmor preto.No seu palacio esculpido
Não entram constellações;
Os tectos dos seus sallões
São todos d’ouro polido!Nas largas escadarias
Sobem vassallos ao cento,
De noute suluça o vento
N’aquellas tapeçarias.E pelas largas janellas
Fechadas, sempre corridas,
Ha flores desconhecidas
Que não olham as estrellas.Na dextra segura um calix,
– Calix da Dôr e da Magoa!
Onde está contida a agoa
E o sangue dos nossos males!Pelas florestas sosinhas
Escuras, sem rouxinoes,
Erram chorando os Heroes,
E as desgraçadas Rainhas.Seguida, á noute, de servas,
Caminha, em cortejo mudo,
Rojando o negro velludo
De seu cabello nas hervas.Sómente ao vel-a passar
Ficam as almas surprezas;
– Ha todo um mar de tristezas
No abismo do seu olhar!
Dobrada à Moda do Porto
Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo …(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
Os Captivos
Encostados ás grades da prisão,
Olham o céo os palidos captivos.
Já com raios obliquos, fugitivos,
Despede o sol um ultimo clarão.Entre sombras, no longe, vagamente,
Morrem as vozes na extensão saudosa.
Cae do espaço, pesada, silenciosa,
A tristeza das cousas, lentamente.E os captivos suspiram. Bandos de aves
Passam velozes, passam apressados,
Como absortos em intimos cuidados,
Como absortos em pensamentos graves.E dizem os captivos: Na amplidão
Jamais se extingue a eterna claridade…
A ave tem o vôo e a liberdade…
O homem tem os muros da prisão!Aonde ides? qual é vossa jornada?
Á luz? á aurora? á immensidade? aonde?
— Porém o bando passa e mal responde:
Á noite, á escuridão, ao abysmo, ao nada! —E os captivos suspiram. Surge o vento,
Surge e perpassa esquivo e inquieto,
Como quem traz algum pezar secreto,
Como quem soffre e cala algum tormento.E dizem os captivos: Que tristezas,
Que segredos antigos, que desditas,
Caminheiro de estradas infinitas,
Te levam a gemer pelas devezas?
Deus Triste
Deus é triste.
Domingo descobri que Deus é triste
pela semana afora e além do tempo.A solidão de Deus é incomparável.
Deus não está diante de Deus.
Está sempre em si mesmo e cobre tudo
tristinfinitamente.A tristeza de Deus é como Deus: eterna.
Deus criou triste.
Outra fonte não tem a tristeza do homem.
Semântica Electrónica
Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
Ordeno ao ordenador que me ordenhe o ordenhado
Ordinalmente
Ordenadamente
Ordeiramente.
Mas o desordeiro
Quebrou o ordenador
E eu já não dou ordens
coordenadas
Seja a quem for.
Então resolvo tomar ordens
Menores, maiores,
E sou ordenado,
Enfim – o ordenado
Que tentei ordenhar ao ordenador quebrado.
– Mas – diz-me a ordenança –
Você não pode ordenhar uma máquina:
Uma máquina é que pode ordenhar uma vaca.
De mais a mais, você agora é padre,
E fica mal a um padre ordenhar, mesmo uma ovelha
Velhaca, mesmo uma ovelha velha,
Quanto mais uma vaca!
Pois uma máquina é vicária (você é vigário?):
Vaca (em vacância) à vaca.
São ordens…
Eu então, ordinalmente ordeiro, ordenado, ordenhado,
Às ordens da ordenança em ordem unida e dispersa
(Para acabar a conversa
Como aprendi na Infantaria),
Ordenhado chorei meu triste fado.
Mas tristeza ordenhada é nata de alegria:
E chorei leite condensado,
Leite em pó, leite céptico asséptico,
Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!
Males de Anto
A Ares n’uma aldeia
Quando cheguei, aqui, Santo Deus! como eu vinha!
Nem mesmo sei dizer que doença era a minha,
Porque eram todas, eu sei lá! desde o odio ao tedio.
Molestias d’alma para as quaes não ha remedio.
Nada compunha! Nada, nada. Que tormento!
Dir-se-ia accaso que perdera o meu talento:
No entanto, ás vezes, os meus nervos gastos, velhos,
Convulsionavam-nos relampagos vermelhos,
Que eram, bem o sentia, instantes de Camões!
Sei de cór e salteado as minhas afflicções:
Quiz partir, professar n’um convento de Italia,
Ir pelo Mundo, com os pés n’uma sandalia…
Comia terra, embebedava-me com luz!
Extasis, spasmos da Thereza de Jezus!
Contei n’aquelle dia um cento de desgraças.
Andava, á noite, só, bebia a noite ás taças.
O meu cavaco era o dos mortos, o das loizas.
Odiava os homens ainda mais, odiava as Coizas.
Nojo de tudo, horror! Trazia sempre luvas
(Na aldeia, sim!) para pegar n’um cacho d’uvas,
Ou n’uma flor. Por cauza d’essas mãos… Perdoae-me,
Aldeões! eu sei que vós sois puros. Desculpae-me.Mas, atravez da minha dor,
Cantiga de Amigo
Nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausência tudo liso de espanto
e nem Camões Virgílio Shelley Dante
– o meu amigo está longe
e a distância é bastante.Nem um som nem um grito nem um ai
tudo calado todos sem mãe nem pai
Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!– o meu amigo está longe
e a tristeza é bastante.Nada a não ser este silêncio tenso
que faz do amor sozinho o amor imenso.
Calai Camões Virgílio Shelley Dante:
o meu amigo está longe
e a saudade é bastante!
Como Inútil Taça Cheia
Como inútil taça cheia
Que ninguém ergue da mesa,
Transborda de dor alheia
Meu coração sem tristeza.Sonhos de mágoa figura
Só para Ter que sentir
E assim não tem a amargura
Que se temeu a fingir.Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.
Visio
Eras pálida. E os cabelos,
Aéreos, soltos novelos,
Sobre as espáduas caíam…
Os olhos meio cerrados
De volúpia e de ternura
Entre lágrimas luziam…
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,
Ao teu seio me cingiam…Depois, naquele delírio,
Suave, doce martírio
De pouquíssimos instantes,
Os teus lábios sequiosos,
Frios, trêmulos, trocavam
Os beijos mais delirantes,
E no supremo dos gozos
Ante os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes…Depois… depois a verdade,
A fria realidade,
A solidão, a tristeza;
Daquele sonho desperto,
Olhei… silêncio de morte
Respirava a natureza —
Era a terra, era o deserto,
Fora-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira;
Tu e o teu olhar ardente,
Lábios trêmulos e frios,
O abraço longo e apertado,
O beijo doce e veemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a fantasia doente.E agora te vejo. E fria
Tão outra estás da que eu via
Naquele sonho encantado!