Sonetos Exclamativos de Raimundo Correia

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Banzo

VisÔes que na alma o céu do exílio incuba,
Mortais visĂ”es! Fuzila o azul infando…
Coleia, basilisco de ouro, ondeando
O NĂ­ger… Bramem leĂ”es de fulva juba…

Uivam chacais… Ressoa a fera tuba
Dos cafres, pelas grotas retumbando,
E a estrelada das ĂĄrvores, que um bando
De paquidermes colossais derruba…

Como o guaraz nas rubras penhas dorme,
Dorme em nimbos de sangue o sol oculto…
Fuma o saibro africano incandescente…

Vai com a sombra crescendo o vulto enorme
Do baobĂĄ… E cresce na alma o vulto
De uma tristeza, imensa, imensamente…

Saudade

Aqui outrora retumbaram hinos;
Muito coche real nestas calçadas
E nestas praças, hoje abandonadas,
Rodou por entre os ouropĂ©is mais finos…

Arcos de flores, fachos purpurinos,
Trons festivais, bandeiras desfraldadas,
GirĂąndolas, clarins, atropeladas
LegiĂ”es de povo, bimbalhar de sinos…

Tudo passou! Mas dessas arcarias
Negras, e desses torreÔes medonhos,
Alguém se assenta sobre as låjeas frias;

E em torno os olhos Ășmidos, tristonhos,
Espraia, e chora, como Jeremias,
Sobre a JerusalĂ©m de tantos sonhos!…

Nua E Crua

Doire a Poesia a escura realidade
E a mim a encubra! Um visionĂĄrio ardente
Quis vĂȘ-la nua um dia; e, ousadamente,
Do ĂĄureo manto despoja a divindade;

O estema da perpétua mocidade
Tira-lhe e as galas; e ei-la, de repente,
Inteiramente nua e inteiramente
Crua, como a Verdade! E era a Verdade!

Fita-a em seguida, e atĂŽnito recua…
– Ó Musa! exclama entĂŁo, magoado e triste,
Traja de novo a louçainha tua!

Veste outra vez as roupas que despiste!
Que olhar se apraz em ver-te assim tĂŁo nua?…
À nudez da Verdade quem resiste?!

O Misantropo

A boca, Ă s vezes, o louvor escapa
E o pranto aos olhos; mas louvor e pranto
Mentem: tapa o louvor a inveja, enquanto
O pranto a vesga hipocrisia tapa.

Do louvor, com que espanto, sob a capa
Vejo tanta dobrez, ludĂ­brio tanto!
E o pranto em olhos vejo, com que espanto,
Que escarnecem dos mais, rindo Ă  socapa!

Porque, desde que esse Ăłdio atroz me veio,
Só traiçÔes vejo em cada olhar venusto?
PerfĂ­dias sĂł em cada humano seio?

Acaso as almas poderei sem custo
Ver, perspĂ­cuo e melhor, sĂł quando odeio?
E Ă© preciso odiar para ser justo?!

Tristeza De Momo

Pela primeira vez, Ă­mpias risadas
Susta em pranto o deus da zombaria;
Chora; e vingam-se dele, nesse dia,
Os silvanos e as ninfas ultrajadas;

Trovejam bocas mil escancaradas,
Rindo; arrombam-se os diques da alegria;
E estoira descomposta vozeria
Por toda a selva, e apupos e pedradas…

Fauno, indigita; a Nåiade o caçoa;
SĂĄtiros vis, da mais indigna laia,
Zombam. NĂŁo hĂĄ quem dele se condoa!

E Eco propaga a formidĂĄvel vaia,
Que além por fundos boqueirÔes reboa
E, como um largo mar, rola e se espraia…

Primeiras VigĂ­lias

Dos revoltos lençóis sobre o deserto
Despejava-se, em ondas silenciosas,
O luar dessas noites vaporosas,
De seu lĂąnguido cĂĄlix todo aberto.

Rangia a cama, e deslizavam, perto
Alvas, femĂ­neas formas ondulosas;
E eu a idear, nas Ăąnsias amorosas,
Uns ombros nus, um colo descoberto.

E a gemer: – “Abeirai-vos de meu leito,
Ó sensuais visĂ”es da adolescĂȘncia,
E inflamai-vos na pira em que me inflamo!

Fervem paixÔes despertas no meu peito;
Descai a flor virgĂ­nea da inocĂȘncia,
E irrompe o fruto dolorido… Eu amo!”

Plena Nudez

Eu amo os gregos tipos de escultura:
PagĂŁs nuas no mĂĄrmore entalhadas;
Não essas produçÔes que a estufa escura
Das modas cria, tortas e enfezadas.

Quero um pleno esplendor, viço e frescura
Os corpos nus; as linhas onduladas
Livres: de carne exuberante e pura
Todas as saliĂȘncias destacadas…

NĂŁo quero, a VĂȘnus opulenta e bela
De luxuriantes formas, entrevĂȘ-la
De transparente tĂșnica atravĂ©s:

Quero vĂȘ-la, sem pejo, sem receios,
Os braços nus, o dorso nu, os seios
Nus… toda nua, da cabeça aos pĂ©s!

MarĂ­lia

Ó Marília! Ó Dirceu! Eram dois ninhos
Os vossos coraçÔes, ninhos de flores;
Mas, entre os quais, sentĂ­eis os rigores
Lacerantes de incĂłgnitos espinhos;

Tremiam, como em flĂĄcidos arminhos,
Promiscuamente, neles os amores,
As saudades, os cĂąnticos, as dores,
Como uma multidĂŁo de passarinhos…

O sulco profundíssimo que traça
Nos coraçÔes amantes a desgraça,
Ambos nos coraçÔes traçados vistes,

Quando os vossos olhares, no momento,
Cruzaram-se, do negro afastamento,
Marejados de lĂĄgrimas e tristes…

Desdéns

Realçam no marfim da ventarola
As tuas unhas de coral felinas
Garras com que, a sorrir, tu me assassinas,
Bela e feroz… O sĂąndalo se evolua;

O ar cheiroso em redor se desenrola;
Pulsam os seios, arfam as narinas…
Sobre o espaldar de seda o torso inclinas
Numa indolĂȘncia mĂłrbida, espanhola…

Como eu sou infeliz! Como Ă© sangrenta
Essa mĂŁo impiedosa que me arranca
A vida aos poucos, nesta morte lenta!

Essa mĂŁo de fidalga, fina e branca;
Essa mĂŁo, que me atrai e me afugenta,
Que eu afago, que eu beijo, e que me espanca!

Beijos Do CĂ©u

Sonhei-te assim, Ăł minha amante, um dia:
– Vi-te no cĂ©u; e, anamoradamente,
De beijos, a falange resplendente
Dos serafins, teu corpo inteiro ungia…

Santos e anjos beijavam-te… Eu bem via
Beijavam todos o teu lĂĄbio ardente;
E, beijando-te, o prĂłprio Onipotente,
O próprio Deus nos braços te cingia!

Nisto, o ciĂșme – fera que eu nĂŁo domo –
Despertou-me do sonho, repentino
Vi-te a dormir tĂŁo plĂĄcida a meu lado…

E beijei-te tambĂ©m, beijei-te… e, ai! como
Achei doce o teu lĂĄbio purpurino.
Tantas vezes assim no céu beijado!

VĂ©sper

Do seu fastĂ­gio azul, serena e fria,
Desce a noite outonal, augusta e bela;
VĂ©sper fulgura alĂ©m… VĂ©sper! SĂł ela
Todo o céu, doce e pålida, alumia.

De um mosteiro na cĂșpula irradia
Com frouxa luz… Em sua humilde cela,
Contemplativa e lĂąnguida Ă  janela,
Triste freira, fitando-a, se extasia…

VĂ©sper, envolta em deslumbrante alvura,
Ó nuvens, que ides pelo espaço afora!
A quem tĂŁo longo olhar volve da altura?

Que olhar, irmĂŁo do seu, procura agora
Na terra o astro do amor? O olhar procura
Da solitĂĄria freira que o namora.

O Monge

-“O coração da infĂąncia”, eu lhe dizia,
“É manso.” E ele me disse:-“Essas estradas,
Quando, novo Eliseu, as percorria,
As crianças lançavam-me pedradas…”

Falei-lhe entĂŁo na glĂłria e na alegria;
E ele-alvas barbas longas derramadas
No burel negro-o olhar somente erguia
Às cĂ©rulas regiĂ”es ilimitadas…

Quando eu, porém, falei no amor, um riso
SĂșbito as faces do impassĂ­vel monge
Iluminou… Era o vislumbre incerto,

Era a luz de um crepĂșsculo indeciso
Entre os clarÔes de um sol que jå vai longe
E as sombras de uma noite que vem perto!…

Luiz Gama

A Raul Pompéia

Tantos triunfos te contando os dias,
Iam-te os dias descontando e os anos,
Quando bramavas, quando combatias
Contra os bĂĄrbaros, contra os desumanos;

Quando a alma brava e procelosa abrias
InvergĂĄvel ao pulso dos tiranos,
E Ă­gnea, como os desertos africanos
Dilacerados pelas ventanias…

Contra o inimigo atroz rompeste em guerra,
GrilhÔes a rebentar por toda a parte,
Por toda a parte a escancarar masmorras.

Morreste!… Embalde, EscravidĂŁo! Por terra
Rolou… Morreu por nĂŁo poder matar-te!
Também não tarda muito que tu morras!

Fetichismo

Homem, da vida as sombras inclementes
Interrogas em vĂŁo: – Que cĂ©us habita
Deus? Onde essa regiĂŁo de luz bendita,
ParaĂ­so dos justos e dos crentes?…

Em vĂŁo tateiam tuas mĂŁos trementes
As entranhas da noite erma, infinita,
Onde a dĂșvida atroz blasfema e grita,
E onde hĂĄ sĂł queixas e ranger de dentes…

A essa abĂłbada escura, em vĂŁo elevas
Os braços para o Deus sonhado, e lutas
Por abarcĂĄ-lo; Ă© tudo em torno trevas…

Somente o våcuo estreitas em teus braços;
E apenas, pĂĄvido, um ruĂ­do escutas,
Que Ă© o ruĂ­do dos teus prĂłprios passos!…

Julieta

A loura Julieta enamorada,
Triste, lĂąnguida, pĂĄlida, abatida,
Aparece radiante na sacada
Dos raios brancos do luar ferida.

Engolfa o olhar na sombra condensada,
Perscruta, busca em torno… e na avenida
Surge Romeu; da valerosa espada
Esplende a clara lĂąmina polida…

Sente-se o arfar de sĂŽfregos desejos,
Estoura no ar um turbilhĂŁo de beijos,
Mas o dia reponta!… Ó indiscreta

Da cotovia matinal garganta!
Ó perigo do amor, que o amor quebranta!
Ó noites de Verona! Ó Julieta!

Amor E Vida

Esconde-me a alma, no Ă­ntimo, oprimida,
Este amor infeliz, como se fora
Um crime aos olhos dessa, que ela adora,
Dessa, que crendo-o, crera-se ofendida.

A crua e rija lĂąmina homicida
Do seu desdém vara-me o peito; embora,
Que o amor que cresce nele, e nele mora,
SĂł findarĂĄ quando findar-me a vida!

Ó meu amor! como num mar profundo,
Achaste em mim teu ĂĄlgido, teu fundo,
Teu derradeiro, teu feral abrigo!

E qual do rei de Tule a taça de ouro,
Ó meu sacro, Ăł meu Ășnico tesouro!
Ó meu amor! tu morrerás comigo!

A Cavalgada

A lua banha a solitĂĄria estrada…
SilĂȘncio!… mas alĂ©m, confuso e brando,
O som longĂ­nquo vem se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.

São fidalgos que voltam da caçada;
VĂȘm alegres, vĂȘm rindo, vĂȘm cantando,
E as trompas a soar vĂŁo agitando
O remanso da noite embalsamada…

E o bosque estala, move-se, estremece…
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se apĂłs no centro da montanha…

E o silĂȘncio outra vez soturno desce,
E lĂ­mpida, sem mĂĄcula, alvacenta
A lua a estrada solitĂĄria banha…

Mal Secreto

Se a cĂłlera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrĂłi cada ilusĂŁo que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espĂ­rito que chora
Ver através da måscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, entĂŁo piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recĂŽndito inimigo,
Como invisĂ­vel chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura Ășnica consiste
Em parecer aos outros venturosa!