Por Sua Ninfa, Céfalo Deixava
Por sua Ninfa, Céfalo deixava
Aurora, que por ele se perdia,
posto que dĂĄ princĂpio ao claro dia,
posto que as roxas flores imitava.Ele, que a bela PrĂłcris tanto amava
que sĂł por ela tudo enjeitaria,
deseja de atentar se lhe acharia
tão firme fé como nele achava.Mudado o trajo, tece o duro engano:
outro se finge, preço pÔe diante,
quebra se a fé mudåvel, e consente.à engenho sutil para seu dano!
Vede que manhas busca um cego amante
para que sempre seja descontente!
Sonetos de LuĂs de CamĂ”es
205 resultadosQuem pode livre ser, gentil Senhora,
Quem pode livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juĂzo sossegado,
Se o Menino que de olhos Ă© privado
Nas meninas de vossos olhos mora?Ali manda, ali reina, ali namora,
Ali vive das gentes venerado;
Que o vivo lume e o rosto delicado
Imagens sĂŁo nas quais o Amor se adora.Quem vĂȘ que em branca neve nascem rosas
Que fios crespos de ouro vĂŁo cercando,
Se por entre esta luz a vista passa,Raios de ouro verĂĄ, que as duvidosas
Almas estĂŁo no peito trespassando
Assim como um cristal o Sol trespassa.
Portugal, TĂŁo Diferente de seu Ser Primeiro
Os reinos e os impérios poderosos,
Que em grandeza no mundo mais cresceram,
Ou por valor de esforço floresceram,
Ou por varĂ”es nas letras espantosos.Teve GrĂ©cia TemĂstocles; famosos,
Os CipiÔes a Roma engrandeceram;
Doze Pares a França glória deram;
Cides a Espanha, e Laras belicosos.Ao nosso Portugal, que agora vemos
TĂŁo diferente de seu ser primeiro,
Os vossos deram honra e liberdade.E em vĂłs, grĂŁo sucessor e novo herdeiro
Do Braganção estado, hå mil extremos
Iguais ao sangue e mores que a idade.
Coitado! que em um tempo choro e rio
Coitado! que em um tempo choro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço;
Du~a cousa confio e desconfio.Voo sem asas; estou cego e guio;
E no que valho mais menos mereço.
Calo e dou vozes, falo e emudeço,
Nada me contradiz, e eu aporfio.Queria, se ser pudesse, o impossĂvel;
Queria poder mudar-me e estar quedo;
Usar de liberdade e estar cativo;Queria que visto fosse e invisĂvel;
Queira desenredar-me e mais me enredo:
Tais os extremos em que triste vivo!
NascerĂŁo Saudades de Meu Bem
Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas ĂĄguas de cristal,
Que em vĂłs os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos;Silvestres montes, ĂĄsperos penedos
Compostos de concerto desigual;
Sabei que, sem licença de meu mal,
JĂĄ nĂŁo podeis fazer meus olhos ledos.E pois jĂĄ me nĂŁo vedes como vistes,
NĂŁo me alegrem verduras deleitosas,
Nem ĂĄguas que correndo alegres vĂȘm.Semearei em vĂłs lembranças tristes,
Regar-vos-ei com lĂĄgrimas saudosas,
E nascerĂŁo saudades de meu bem.
Doce Contentamento JĂĄ Passado
Doce contentamento jĂĄ passado,
em que todo meu bem jĂĄ consistia,
quem vos levou de minha companhia
e me deixou de vĂłs tĂŁo apartado?Quem cuidou que se visse neste estado
naquelas breves horas de alegria,
quando minha ventura consentia
que de enganos vivesse meu cuidado?Fortuna minha foi, cruel e dura,
aquela que causou meu perdimento,
com a qual ninguĂ©m pode ter cautela.Nem se engane nenhĂŒa criatura,
que nĂŁo pode nenhum impedimento
fugir do que [lhe] ordena sua estrela.
Ondados Fios D’ouro Reluzente
Ondados fios d’ouro reluzente,
que, agora da mĂŁo bela recolhidos,
agora sobre as rosas estendidos,
fazeis que sua beleza se acrescente;Olhos, que vos moveis tĂŁo docemente,
em mil divinos raios entendidos,
se de cĂĄ me levais alma e sentidos,
que fora, se de vĂłs nĂŁo fora ausente?Honesto riso, que entre a mor fineza
de perlas e corais nasce e parece,
se n’alma em doces ecos nĂŁo o ouvisse!Se imaginando sĂł tanta beleza
de si, em nova glĂłria, a alma se esquece,
que farĂĄ quando a vir? Ah! quem a visse!
MemĂłria De Meu Bem, Cortado Em Flores
MemĂłria de meu bem, cortado em flores
por ordem de meus tristes e maus Fados,
deixai-me descansar com meus cuidados
nesta inquietação de meus amores.Basta-me o mal presente, e os temores
dos sucessos que espero infortunados,
sem que venham, de novo, bens passados
afrontar meu repouso com suas dores.Perdi nua hora quanto em termos
tĂŁo vagarosos e largos alcancei;
leixai-me, pois, lembranças desta glória.Cumpre acabe a vida nestes ermos,
porque neles com meu mal acabarei
mil vidas, nĂŁo ua sĂł, dura memĂłria!
Conversação Doméstica Afeiçoa
Conversação doméstica afeiçoa,
ora em forma de boa e sĂŁ vontade,
ora de ĂŒa amorosa piedade,
sem olhar qualidade de pessoa.Se despois, porventura, vos magoa
com desamor e pouca lealdade,
logo vos faz mentira da verdade
o brando Amor, que tudo em si perdoa.NĂŁo sĂŁo isto que falo conjecturas,
que o pensamento julga na aparĂȘncia,
por fazer delicadas escrituras.Metido tenho a mĂŁo na consciĂȘncia,
e nĂŁo falo senĂŁo verdades puras
que me ensinou a viva experiĂȘncia.
Se me vem tanta glĂłria sĂł de olhar-te
Se me vem tanta glĂłria sĂł de olhar-te,
Ă pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te,
Grão paga de um engano é desejar-te.Se aspiro por quem és a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei-de ofender-te;
Se mal me quero a mim por bem querer-te,
Que prémio querer posso mais que amar-te?Porque um tão raro amor não me socorre?
Ă humano tesouro! Ă doce glĂłria!
Ditoso quem Ă morte por ti corre!Sempre escrita estarĂĄs nesta memĂłria;
E esta alma viverĂĄ, pois por ti morre,
Porque ao fim da batalha Ă© a vitĂłria.
Vos Foi Beijar na Parte Onde se Via
O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil, que eu na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo
Por alcançar a luz que vence o dia.Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciĂȘncia fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.Ditosa aquela flama que se atreve
A apagar seus ardores e tormentos
Na vista a quem o sol temores deve!Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vĂłs, e queima o fogo aquela neve
Que queima coraçÔes e pensamentos.
Que Vençais No Oriente Tantos Reis
Que vençais no Oriente tantos Reis,
que de novo nos deis da Ăndia o Estado,
que escureceis a fama que ganhado
tinham os que a ganharam a infiéis;que do tempo tenhais vencido as leis,
que tudo, enfim, vençais co tempo armado,
mais Ă© vencer na pĂĄtria, desarmado,
os monstros e as Quimeras que venceis.E assi, sobre vencerdes tanto imigo,
e por armas fazer que, sem segundo,
vosso nome no mundo ouvido seja,o que vos dĂĄ mais nome inda no mundo,
Ă© vencerdes, Senhor, no Reino amigo,
tantas ingratidÔes, tão grande enveja!
Senhor JoĂŁo Lopes, O Meu Baixo Estado
Senhor JoĂŁo Lopes, o meu baixo estado
ontem vi posto em grau tĂŁo excelente,
que vĂłs, que sois enveja a toda a gente,
só por mim vos quiséreis ver trocado.Vi o gesto suave e delicado
que jĂĄ vos fez, contente e descontente,
lançar ao vento a voz tão docemente
que fez o ar sereno e sossegado.Vi lhe em poucas palavras dizer, quanto
ninguém diria em muitas; eu só, cego,
magoado fiquei na doce fala.Mas mal haja a Fortuna, e o Moço cego!
Um, porque os coraçÔes obriga a tanto;
outra, porque os estados desiguala.
Se AlgĂŒ’hora Em VĂłs A Piedade
Se algĂŒ’hora em vĂłs a piedade
de tĂŁo longo tormento se sentira,
nĂŁo consentira Amor que me partira
de vossos olhos, minha saĂŒdade.Apartei me de vĂłs, mas a vontade,
que pelo natural n’alma vos tira,
me faz crer que esta ausĂȘncia Ă© de mentira;
mas inda mal, porém, porque é verdade.Ir me hei, Senhora; e, neste apartamento,
tomarão tristes lågrimas vingança
nos olhos de quem fostes mantimento.E assi darei vida a meu tormento;
que, enfim, cå me acharå minha lembrança
sepultado no vosso esquecimento.
Verdade, Amor, RazĂŁo, Merecimento
Verdade, Amor, RazĂŁo, Merecimento,
qualquer alma farĂŁo segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
tĂȘm do confuso mundo o regimento.Efeitos mil revolve o pensamento
e nĂŁo sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que Ă© mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.Doctos varÔes darão razÔes subidas,
mas sĂŁo experiĂȘncias mais provadas,
e por isso Ă© melhor ter muito visto.Cousas hĂĄ i que passam sem ser criadas
e cousas criadas hĂĄ sem ser passadas,
mas o melhor de tudo Ă© crer em Cristo.
Erros Meus, MĂĄ Fortuna, Amor Ardente
Erros meus, mĂĄ Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.Tudo passei; mas tenho tĂŁo presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que jĂĄ as frequĂȘncias suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.De Amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!
Em Flor Vos Arrancou, De EntĂŁo Crecida
Em flor vos arrancou, de entĂŁo crescida
(Ah! senhor dom AntĂłnio!), a dura sorte,
donde fazendo andava o braço forte
a fama dos Antigos esquecida.ĂŒa sĂł razĂŁo tenho conhecida
com que tamanha mĂĄgoa se conforte:
que, pois no mundo havia honrada morte,
que nĂŁo podĂeis ter mais larga a vida.Se meus humildes versos podem tanto
que co desejo meu se iguale a arte,
especial matéria me sereis.E, celebrado em triste e longo canto,
se morrestes nas mĂŁos do fero Marte,
na memĂłria das gentes vivereis.
CĂĄ nesta BabilĂłnia
CĂĄ nesta BabilĂłnia, donde mana
Matéria a quanto mal o mundo cria;
CĂĄ, onde o puro Amor nĂŁo tem valia,
Que a MĂŁe, que manda mais, tudo profana;CĂĄ, onde o mal se afina, o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
CĂĄ, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vĂŁo a Deus engana;CĂĄ, neste labirinto, onde a Nobreza,
O Valor e o Saber pedindo vĂŁo
Ăs portas da Cobiça e da Vileza;CĂĄ, neste escuro caos de confusĂŁo,
Cumprindo o curso estou da natureza.
VĂȘ se me esquecerei de ti, SiĂŁo!
O tempo acaba o ano, o mĂȘs e a hora
O tempo acaba o ano, o mĂȘs e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidĂŁo, qualquer dureza;
Mas nĂŁo pode acabar minha tristeza,
Enquanto nĂŁo quiserdes vĂłs, Senhora.O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança.Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.
Ditosa Ave
Quem fosse acompanhando juntamente
Por esses verdes campos a avezinha,
Que despois de perder um bem que tinha,
NĂŁo sabe mais que cousa Ă© ser contente!E quem fosse apartando-se da gente,
Ela por companheira e por vizinha,
Me ajudasse a chorar a pena minha,
E eu a ela também a que ela sente!Ditosa ave! que ao menos, se a natura
A seu primeiro bem nĂŁo dĂĄ segundo,
DĂĄ-lhe o ser triste a seu contentamento.Mas triste quem de longe quis ventura
Que para respirar lhe falte o vento,
E para tudo, enfim, lhe falte o mundo!