Num Jardim Adornado De Verdura
Num jardim adornado de verdura,
a que esmaltam por cima várias flores,
entrou um dia a deusa dos amores,
com a deusa da caça e da espessura.Diana tomou logo üa rosa pura,
Vénus um roxo lírio, dos milhores;
mas excediam muito às outras flores
as violas, na graça e fermosura.Perguntam a Cupido, que ali estava,
qual daquelas três flores tomaria,
por mais suave, pura e mais fermosa?Sorrindo se, o Minino lhe tornava:
todas fermosas são, mas eu queria
V i o l ‘a n t e s que lírio, nem que rosa.
Sonetos de Luís de Camões
205 resultadosComo Fizeste, Pórcia, Tal Ferida?
Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
Foi voluntária, ou foi por inocência?
-Mas foi fazer Amor experiência
se podia sofrer tirar me a vida.-E com teu próprio sangue te convida
a não pores à vida resistência?
-Ando me acostumando à paciência,
porque o temor a morte não impida.-Pois porque comes, logo, fogo ardente,
se a ferro te costumas?-Porque ordena
Amor que morra e pene juntamente.E tens a dor do ferro por pequena?
-Si: que a dor costumada não se sente;
e eu não quero a morte sem a pena.
Por Sua Ninfa, Céfalo Deixava
Por sua Ninfa, Céfalo deixava
Aurora, que por ele se perdia,
posto que dá princípio ao claro dia,
posto que as roxas flores imitava.Ele, que a bela Prócris tanto amava
que só por ela tudo enjeitaria,
deseja de atentar se lhe acharia
tão firme fé como nele achava.Mudado o trajo, tece o duro engano:
outro se finge, preço põe diante,
quebra se a fé mudável, e consente.Ó engenho sutil para seu dano!
Vede que manhas busca um cego amante
para que sempre seja descontente!
Quem pode livre ser, gentil Senhora,
Quem pode livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juízo sossegado,
Se o Menino que de olhos é privado
Nas meninas de vossos olhos mora?Ali manda, ali reina, ali namora,
Ali vive das gentes venerado;
Que o vivo lume e o rosto delicado
Imagens são nas quais o Amor se adora.Quem vê que em branca neve nascem rosas
Que fios crespos de ouro vão cercando,
Se por entre esta luz a vista passa,Raios de ouro verá, que as duvidosas
Almas estão no peito trespassando
Assim como um cristal o Sol trespassa.
Portugal, Tão Diferente de seu Ser Primeiro
Os reinos e os impérios poderosos,
Que em grandeza no mundo mais cresceram,
Ou por valor de esforço floresceram,
Ou por varões nas letras espantosos.Teve Grécia Temístocles; famosos,
Os Cipiões a Roma engrandeceram;
Doze Pares a França glória deram;
Cides a Espanha, e Laras belicosos.Ao nosso Portugal, que agora vemos
Tão diferente de seu ser primeiro,
Os vossos deram honra e liberdade.E em vós, grão sucessor e novo herdeiro
Do Braganção estado, há mil extremos
Iguais ao sangue e mores que a idade.
Coitado! que em um tempo choro e rio
Coitado! que em um tempo choro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço;
Du~a cousa confio e desconfio.Voo sem asas; estou cego e guio;
E no que valho mais menos mereço.
Calo e dou vozes, falo e emudeço,
Nada me contradiz, e eu aporfio.Queria, se ser pudesse, o impossível;
Queria poder mudar-me e estar quedo;
Usar de liberdade e estar cativo;Queria que visto fosse e invisível;
Queira desenredar-me e mais me enredo:
Tais os extremos em que triste vivo!
Nascerão Saudades de Meu Bem
Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de cristal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos;Silvestres montes, ásperos penedos
Compostos de concerto desigual;
Sabei que, sem licença de meu mal,
Já não podeis fazer meus olhos ledos.E pois já me não vedes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem águas que correndo alegres vêm.Semearei em vós lembranças tristes,
Regar-vos-ei com lágrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.
Doce Contentamento Já Passado
Doce contentamento já passado,
em que todo meu bem já consistia,
quem vos levou de minha companhia
e me deixou de vós tão apartado?Quem cuidou que se visse neste estado
naquelas breves horas de alegria,
quando minha ventura consentia
que de enganos vivesse meu cuidado?Fortuna minha foi, cruel e dura,
aquela que causou meu perdimento,
com a qual ninguém pode ter cautela.Nem se engane nenhüa criatura,
que não pode nenhum impedimento
fugir do que [lhe] ordena sua estrela.
Ondados Fios D’ouro Reluzente
Ondados fios d’ouro reluzente,
que, agora da mão bela recolhidos,
agora sobre as rosas estendidos,
fazeis que sua beleza se acrescente;Olhos, que vos moveis tão docemente,
em mil divinos raios entendidos,
se de cá me levais alma e sentidos,
que fora, se de vós não fora ausente?Honesto riso, que entre a mor fineza
de perlas e corais nasce e parece,
se n’alma em doces ecos não o ouvisse!Se imaginando só tanta beleza
de si, em nova glória, a alma se esquece,
que fará quando a vir? Ah! quem a visse!
Memória De Meu Bem, Cortado Em Flores
Memória de meu bem, cortado em flores
por ordem de meus tristes e maus Fados,
deixai-me descansar com meus cuidados
nesta inquietação de meus amores.Basta-me o mal presente, e os temores
dos sucessos que espero infortunados,
sem que venham, de novo, bens passados
afrontar meu repouso com suas dores.Perdi nua hora quanto em termos
tão vagarosos e largos alcancei;
leixai-me, pois, lembranças desta glória.Cumpre acabe a vida nestes ermos,
porque neles com meu mal acabarei
mil vidas, não ua só, dura memória!
Conversação Doméstica Afeiçoa
Conversação doméstica afeiçoa,
ora em forma de boa e sã vontade,
ora de üa amorosa piedade,
sem olhar qualidade de pessoa.Se despois, porventura, vos magoa
com desamor e pouca lealdade,
logo vos faz mentira da verdade
o brando Amor, que tudo em si perdoa.Não são isto que falo conjecturas,
que o pensamento julga na aparência,
por fazer delicadas escrituras.Metido tenho a mão na consciência,
e não falo senão verdades puras
que me ensinou a viva experiência.
Se me vem tanta glória só de olhar-te
Se me vem tanta glória só de olhar-te,
É pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te,
Grão paga de um engano é desejar-te.Se aspiro por quem és a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei-de ofender-te;
Se mal me quero a mim por bem querer-te,
Que prémio querer posso mais que amar-te?Porque um tão raro amor não me socorre?
Ó humano tesouro! Ó doce glória!
Ditoso quem à morte por ti corre!Sempre escrita estarás nesta memória;
E esta alma viverá, pois por ti morre,
Porque ao fim da batalha é a vitória.
Vos Foi Beijar na Parte Onde se Via
O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil, que eu na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo
Por alcançar a luz que vence o dia.Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.Ditosa aquela flama que se atreve
A apagar seus ardores e tormentos
Na vista a quem o sol temores deve!Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela neve
Que queima corações e pensamentos.
Que Vençais No Oriente Tantos Reis
Que vençais no Oriente tantos Reis,
que de novo nos deis da Índia o Estado,
que escureceis a fama que ganhado
tinham os que a ganharam a infiéis;que do tempo tenhais vencido as leis,
que tudo, enfim, vençais co tempo armado,
mais é vencer na pátria, desarmado,
os monstros e as Quimeras que venceis.E assi, sobre vencerdes tanto imigo,
e por armas fazer que, sem segundo,
vosso nome no mundo ouvido seja,o que vos dá mais nome inda no mundo,
é vencerdes, Senhor, no Reino amigo,
tantas ingratidões, tão grande enveja!
Senhor João Lopes, O Meu Baixo Estado
Senhor João Lopes, o meu baixo estado
ontem vi posto em grau tão excelente,
que vós, que sois enveja a toda a gente,
só por mim vos quiséreis ver trocado.Vi o gesto suave e delicado
que já vos fez, contente e descontente,
lançar ao vento a voz tão docemente
que fez o ar sereno e sossegado.Vi lhe em poucas palavras dizer, quanto
ninguém diria em muitas; eu só, cego,
magoado fiquei na doce fala.Mas mal haja a Fortuna, e o Moço cego!
Um, porque os corações obriga a tanto;
outra, porque os estados desiguala.
Se Algü’hora Em Vós A Piedade
Se algü’hora em vós a piedade
de tão longo tormento se sentira,
não consentira Amor que me partira
de vossos olhos, minha saüdade.Apartei me de vós, mas a vontade,
que pelo natural n’alma vos tira,
me faz crer que esta ausência é de mentira;
mas inda mal, porém, porque é verdade.Ir me hei, Senhora; e, neste apartamento,
tomarão tristes lágrimas vingança
nos olhos de quem fostes mantimento.E assi darei vida a meu tormento;
que, enfim, cá me achará minha lembrança
sepultado no vosso esquecimento.
Verdade, Amor, Razão, Merecimento
Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
qualquer alma farão segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
têm do confuso mundo o regimento.Efeitos mil revolve o pensamento
e não sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que é mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.Doctos varões darão razões subidas,
mas são experiências mais provadas,
e por isso é melhor ter muito visto.Cousas há i que passam sem ser criadas
e cousas criadas há sem ser passadas,
mas o melhor de tudo é crer em Cristo.
Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente
Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que já as frequências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.De Amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!
Em Flor Vos Arrancou, De Então Crecida
Em flor vos arrancou, de então crescida
(Ah! senhor dom António!), a dura sorte,
donde fazendo andava o braço forte
a fama dos Antigos esquecida.üa só razão tenho conhecida
com que tamanha mágoa se conforte:
que, pois no mundo havia honrada morte,
que não podíeis ter mais larga a vida.Se meus humildes versos podem tanto
que co desejo meu se iguale a arte,
especial matéria me sereis.E, celebrado em triste e longo canto,
se morrestes nas mãos do fero Marte,
na memória das gentes vivereis.
Cá nesta Babilónia
Cá nesta Babilónia, donde mana
Matéria a quanto mal o mundo cria;
Cá, onde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;Cá, onde o mal se afina, o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a Deus engana;Cá, neste labirinto, onde a Nobreza,
O Valor e o Saber pedindo vão
Às portas da Cobiça e da Vileza;Cá, neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!