Em Tormentos Cruéis
Em tormentos cruéis, tal sofrimento,
em tĂŁo contĂnua dor, que nunca aliva,
chamar a morte sempre, e que ela, altiva,
se ria dos meus rogos, no tormento!E ver no mal que todo entendimento
naturalmente foge, e quanto aviva
a dor mais o vagar da alma cativa,
a quem nĂŁo farĂĄ crer que Ă© tudo um vento?Bem sei uns olhos, que tĂȘm toda a culpa,
e sĂŁo os meus, que a toda parte vĂȘm
apĂłs o que vĂȘem sempre e os desculpa.Ă minhas visĂ”es altas, meu sĂł bem,
quem vos a vĂłs nĂŁo vĂȘ, esse me culpa,
e eu sou o só que as vejo, outrem ninguém!
Sonetos sobre Entendimento
16 resultadosXLVI
NĂŁo vĂȘs, Lise, brincar esse menino
Com aquela avezinha? Estende o braço;
Deixa-a fugir; mas apertando o laço,
A condena outra vez ao seu destino?Nessa mesma figura, eu imagino,
Tens minha liberdade; pois ao passo,
Que cuido, que estou livre do embaraço,
EntĂŁo me prende mais meu desatino.Em um contĂnuo giro o pensamento
Tanto a precipitar-me se encaminha,
Que nĂŁo vejo onde pare o meu tormento.Mas fora menos mal esta Ăąnsia minha,
Se me faltasse a mim o entendimento,
Como falta a razĂŁo a esta avezinha.
Quando nĂŁo te Vejo Perco o Siso
Formosura do Céu a nós descida,
Que nenhum coração deixas isento,
Satisfazendo a todo pensamento,
Sem que sejas de algum bem entendida;Qual lĂngua pode haver tĂŁo atrevida,
Que tenha de louvar-te atrevimento,
Pois a parte melhor do entendimento,
No menos que em ti hĂĄ se vĂȘ perdida?Se em teu valor contemplo a menor parte,
Vendo que abre na terra um paraĂso,
Logo o engenho me falta, o espĂrito mĂngua.Mas o que mais me impede inda louvar-te,
Ă que quando te vejo perco a lĂngua,
E quando nĂŁo te vejo perco o siso.
Soneto Das Alturas
As minhas esquivanças vão no vento
alto do céu, para um lugar sombrio
onde me punge o descontentamento
que no mar nĂŁo desĂĄgua, nem no rio.Ăs mudanças me fio, sempre atento
ao que muda e perece, e ardente e frio,
e novamente ardente Ă© no momento
em que luz o desejo, poldro em cio.Meu corpo nada quer, mas a minh’alma
em fogos de amplidĂŁo deseja tudo
o que ultrapassa o humano entendimento.E embora nada atinja, nĂŁo se acalma
e, sendo alma, transpÔe meu corpo mudo,
e aos céus pede o inefåvel e não o vento.
Quando A Suprema Dor Muito Me Aperta
Quando a suprema dor muito me aperta,
se digo que desejo esquecimento,
é força que se faz ao pensamento,
de que a vontade livre desconserta.Assi, de erro tĂŁo grave me desperta
a luz do bem regido entendimento,
que mostra ser engano ou fingimento
dizer que em tal descanso mais se acerta.Porque essa prĂłpria imagem, que na mente
me representa o bem de que careço,
faz-mo de um certo modo ser presente.Ditosa é, logo, a pena que padeço,
pois que da causa dela em mim se sente
um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.
Soneto III
Rosto que a branca rosa tem vencida,
E ante quem a vermelha Ă© descorada,
Olhos, claras estrelas, que espantada
TĂȘm a alma, aceso o peito, presa a vida;Cabelos, puros raios, que abatida
Deixam da manhĂŁ clara a luz dourada,
Divina fermosura, acompanhada
De ĂŒa virtude a poucas concedida;Palavras cheias de alto entendimento
Raro riso, alto assento, casto peito,
Santos costumes, vivo e grave esprito;Divino e repousado movimento,
E muito mais, que estĂĄ em minha alma escrito,
Me tem num puro amor todo desfeito.
Quando em Meu Desvelado Pensamento
Quando em meu desvelado pensamento
O teu formoso gesto se afigura,
NĂŁo sei que afecto sinto, ou que ternura,
Que a toda esta alma dĂĄ contentamento.Ali fico num largo esquecimento,
Contemplando na minha conjectura
De teu sereno rosto a graça pura,
De teus olhos o doce movimento.Porém logo a inconstante fantasia
Me acorda o entendimento arrebatado,
E desfaz todo o bem que me fingia,Sendo tal este gosto imaginado,
Que de Amor outra glĂłria eu nĂŁo queria
Mais que trazer-te sempre em meu cuidado.
Amor Ă© um EspĂrito InvisĂvel
Dizem que fere amor com passadores
e que traz em matar o pensamento,
mas eu julgo que tem amor de vento
quem cuida haver no mundo tais amores.Também dizem que o pintam os Pintores
menino, nu e cego: e tĂŁo sem tento,
que Ă© mais cego e mais nu d’entendimento,
quem cuida que em amores cabem tais cores.Amor Ă© um espĂrito invisĂvel,
que entra por onde quer, e abranda o peito
sem cor, sem arco, aljava, ou seta dura:Pode num peito humano o impossĂvel,
recebe-se somente no conceito,
e tem no coração posse segura.
Amar Ă© Conhecer Virtude Ardente
AMOR QUE, SEM DETER-SE NO ASPECTO SENSITIVO, PASSA AO INTELECTUAL
Mandou-me, ai FĂĄbio!, que a amasse Flora,
e que nĂŁo a quisesse; meu cuidado,
obediente, confuso, torturado,
sem desejĂĄ-la, tal beleza adora.O que o humano afecto sente e chora
goza o entendimento, enamorado
do espĂrito eterno, encarcerado
neste claustro mortal que o entesoura.Amar Ă© conhecer virtude ardente;
o querer Ă© vontade interessada,
grosseira e rude, passageiramente.O corpo Ă© terra, sĂȘ-lo-ĂĄ, foi nada;
de Deus procede Ă eternidade a mente:
eterno amante sou de eterna amada.Tradução de José Bento
Se pena por amar-vos se merece
Se pena por amar-vos se merece,
Quem dela livre estĂĄ? ou quem isento?
Que alma, que razĂŁo, que entendimento
Em ver-vos se nĂŁo rende e obedece?Que mor glĂłria na vida se oferece
Que ocupar-se em vĂłs o pensamento?
Toda a pena cruel, todo o tormento
Em ver-vos se nĂŁo sente, mas esquece.Mas se merece pena quem amando
ContĂnuo vos estĂĄ, se vos ofende,
O mundo matareis, que todo é vosso.Em mim, Senhora, podeis ir começando,
Que claro se conhece e bem se entende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.
Conselhos A Qualquer Tolo Para Parecer Fidalgo, Rico E Discreto
Bote a sua casaca de veludo,
E seja capitĂŁo sequer dois dias,
Converse Ă porta de Domingos Dias,
Que pega fidalguia mais que tudo.Seja um magano, um pĂcaro, um cornudo,
VĂĄ a palĂĄcio, e apĂłs das cortesias
Perca quanto ganhar nas mercancias,
E em que perca o alheio, esteja mudo.Sempre se ande na caça e montaria,
DĂȘ nova solução, novo epĂteto,
E diga-o, sem propĂłsito, Ă porfia;Quem em dizendo: “facção, pretexto, efecto”.
SerĂĄ no entendimento da Bahia
Mui fidalgo, mui rico, e mui discreto.
A JoĂŁo De Deus
Se Ă© lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vĂŁ toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;à lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E sĂł ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.O que hĂĄ de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crĂȘ de fĂ©, logo duvida;
Se procura, sĂł acha… o desatino!SĂł Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degrĂȘdo, o cĂ©u destino.
O Ăltimo NĂșmero
Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado,
A idĂ©ia estertorava-se… No fundo
Do meu entendimento moribundo
jazia o Ășltimo nĂșmero cansado.Era de vĂȘ-lo, imĂłvel, resignado,
Tragicamente de si mesmo oriundo,
Fora da sucessĂŁo, estranho ao mundo,
Com o reflexo fĂșnebre do Increado:Bradei: – Que fazes ainda no meu crĂąnio?
E o Ășltimo nĂșmero, atro e subterrĂąneo,
Parecia dizer-me: “Ă tarde, amigo!Pois que a minha ontogĂȘnica Grandeza
Nunca vibrou em tua lĂngua presa,
NĂŁo te abandono mais! Morro contigo!”
Retrato de um BĂȘbado
Perdi-me vendo a pipa, o torno aberto;
Minha alma estĂĄ metida em vinho tinto;
TĂŁo bĂȘbado estou que jĂĄ nĂŁo sinto
Ser bĂȘbado coberto ou encoberto.Tenho a cama longe, o sono perto,
No chĂŁo estou e erguer-me nĂŁo consinto,
A barriga de inchada aperta o cinto,
Falando estou dormindo qual desperto.Venha mais vinho e dĂȘem-mo vezes cento,
Que alegra o coração, sustenta a vida,
E pouco vai que engrosse o entendimento.Vingar-me quero, que Ă© grande a bebida;
Tudo o que nĂŁo Ă© beber Ă© lixo e vento,
Que para tĂŁo grande gosto Ă© curta a vida.
Verdade, Amor, RazĂŁo, Merecimento
Verdade, Amor, RazĂŁo, Merecimento,
qualquer alma farĂŁo segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
tĂȘm do confuso mundo o regimento.Efeitos mil revolve o pensamento
e nĂŁo sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que Ă© mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.Doctos varÔes darão razÔes subidas,
mas sĂŁo experiĂȘncias mais provadas,
e por isso Ă© melhor ter muito visto.Cousas hĂĄ i que passam sem ser criadas
e cousas criadas hĂĄ sem ser passadas,
mas o melhor de tudo Ă© crer em Cristo.
Enquanto Quis Fortuna Que Tivesse
Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juĂzo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos nĂŁo dissesse.Ă vĂłs que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tĂŁo diversos,verdades puras sĂŁo, e nĂŁo defeitos…
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos!