Sonetos sobre Poetas de Florbela Espanca

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Sonetos de poetas de Florbela Espanca. Leia este e outros sonetos de Florbela Espanca em Poetris.

Cegueira Bendita

Ando perdida nestes sonhos verdes
De ter nascido e nĂŁo saber quem sou,
Ando ceguinha a tatear paredes
E nem ao menos sei quem me cegou!

NĂŁo vejo nada, tudo Ă© morto e vago…
E a minha alma cega, ao abandono
Faz-me lembrar o nenĂşfar dum lago
´Stendendo as asas brancas cor do sonho…

Ter dentro d´alma na luz de todo o mundo
E nĂŁo ver nada nesse mar sem fundo,
Poetas meus irmĂŁos, que triste sorte!…

E chamam-nos a nĂłs Iluminados!
Pobres cegos sem culpas, sem pecados,
A sofrer pelos outros té à morte!

A Um Livro

No silĂŞncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
Sombra roubada ao livro que ando a ler,
A esse livro de mágoas que me deste.

Estranho livro que escreveste,
Artista da saudade e do sofrer!
Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!

Leio-o, e folheio, assim, toda a minh’alma!
O livro que me deste Ă© meu, e salma
As orações que choro e rio e canto!…

Poeta igual a mim, ai quem me dera
Dizer o que tu dizes!… Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto!…

Torre de Névoa

Subi ao alto, Ă  minha Torre esguia,
Feita de fumo, névoas e luar,
E pus-me, comovida, a conversar
Com os poetas mortos, todo o dia.

Contei-lhes os meus sonhos, a alegria
Dos versos que sĂŁo meus, do meu sonhar,
E todos os poetas, a chorar,
Responderam-me então: “Que fantasia,

Criança doida e crente! Nós também
Tivemos ilusões, como ninguém,
E tudo nos fugiu, tudo morreu! …”

Calaram-se os poetas, tristemente …
E Ă© desde entĂŁo que eu choro amargamente
Na minha Torre esguia junto ao cĂ©u! …

Exaltação

Viver!… Beber o vento e o sol!… Erguer
Ao Céu os corações a palpitar!
Deus fez os nossos braços pra prender,
E a boca fez-se sangue pra beijar!

A chama, sempre rubra, ao alto, a arder!…
Asas sempre perdidas a pairar,
Mais alto para as estrelas desprender!…
A glĂłria!… A fama!… O orgulho de criar!…

Da vida tenho o mel e tenho os travos
No lago dos meus olhos de violetas,
Nos meus beijos extáticos, pagĂŁos!…

Trago na boca o coração dos cravos!
Boémios, vagabundos, e poetas:
– Como eu sou vossa IrmĂŁ, Ăł meus IrmĂŁos!…

Vaidade

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reĂşne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou AlguĂ©m cá neste mundo …
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho … E nĂŁo sou nada! …

Errante

Meu coração da cor dos rubros vinhos
Rasga a mortalha do meu peito brando
E vai fugindo, e tonto vai andando
A perder-se nas brumas dos caminhos.

Meu coração o místico profeta,
O paladino audaz da desventura,
Que sonha ser um santo e um poeta,
Vai procurar o Paço da Ventura…

Meu coração nĂŁo chega lá decerto…
NĂŁo conhece o caminho nem o trilho,
Nem há memĂłria desse sĂ­tio incerto…

Eu tecerei uns sonhos irreais…
Como essa mĂŁe que viu partir o filho,
Como esse filho que nĂŁo voltou mais!

Lembrança

Fui Essa que nas ruas esmolou
E fui a que habitou Paços Reais;
No mármore de curvas ogivais
Fui Essa que as mĂŁos pálidas poisou…

Tanto poeta em versos me cantou!
Fiei o linho Ă  porta dos casais…
Fui descobrir a ĂŤndia e nunca mais
Voltei! Fui essa nau que nĂŁo voltou…

Tenho o perfil moreno, lusitano,
E os olhos verdes, cor do verde Oceano,
Sereia que nasceu de navegantes…

Tudo em cinzentas brumas se dilui…
Ah, quem me dera ser Essas que eu fui,
As que me lembro de ter sido… dantes!…

A Anto!

Poeta da saudade, ó meu poeta qu´rido
Que a morte arrebatou em seu sorrir fatal,
Ao escrever o SĂł pensaste enternecido
Que era o mais triste livro deste Portugal,

Pensaste nos que liam esse teu missal,
Tua bĂ­blia de dor, teu chorar sentido
Temeste que esse altar pudesse fazer mal
Aos que comungam nele a soluçar contigo!

Ă“ Anto! Eu adoro os teus estranhos versos,
Soluços que eu uni e que senti dispersos
Por todo o livro triste! Achei teu coração…

Amo-te como não te quis nunca ninguém,
Como se eu fosse, Ăł Anto, a tua prĂłpria mĂŁe
Beijando-te já frio no fundo do caixão!

Ser Poeta

Ser Poeta Ă© ser mais alto, Ă© ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E nĂŁo saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhĂŁs de oiro e de cetim…
É condensar o mundo num só grito!

E Ă© amar-te, assim, perdidamente…
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizĂŞ-lo cantando a toda gente!

Princesa Desalento

Minh’alma Ă© a Princesa Desalento,
Como um Poeta lhe chamou, um dia.
É revoltada, trágica, sombria,
Como galopes infernais de vento!

É frágil como o sonho dum momento,
Soturna como preces de agonia,
Vive do riso duma boca fria!
Minh’alma Ă© a Princesa Desalento…

Altas horas da noite ela vagueia…
E ao luar suavĂ­ssimo, que anseia,
Põe-se a falar de tanta coisa morta!

O luar ouve a minh’alma, ajoelhado,
E vai traçar, fantástico e gelado,
A sombra duma cruz Ă  tua porta…

A Voz da TĂ­lia

Diz-me a tĂ­lia a cantar: “Eu sou sincera,
Eu sou isto que vês: o sonho, a graça,
Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,
Este ar escultural de bayadera…

E de manhĂŁ o sol Ă© uma cratera,
Uma serpente de oiro que me enlaça…
Trago nas mĂŁos as mĂŁos da Primavera…
E é para mim que em noites de desgraça

Toca o vento Mozart, triste e solene,
E Ă  minha alma vibrante, posta a nu,
Diz a chuva sonetos de Verlaine…”

E, ao ver-me triste, a tĂ­lia murmurou:
“Já fui um dia poeta como tu…
Ainda hás de ser tĂ­lia como eu sou…”

Sombra

De olheiras roxas, roxas, quase pretas,
De olhos lĂ­mpidos, doces, languescentes,
Lagos em calma, pálidos, dormentes
Onde se debruçassem violetas…

De mĂŁos esguias, finas hastes quietas,
Que o vento nĂŁo baloiça em noites quentes…
Nocturno de Chopin… risos dolentes…
Versos tristes em sonhos de Poetas…

Beijo doce de aromas perturbantes…
Rosal bendito que dá rosas… Dantes
Esta era Eu e Eu era a Idolatrada!…

Ah, cinzas mortas! Ah, luz que se apaga!
Vou sendo, em ti, agora, a sombra vaga
D’alguĂ©m que dobra a curva duma estrada…

Horas Rubras

Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos rubros e ardentes,
De noites de volĂşpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas…

Oiço olaias em flor Ă s gargalhadas…
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
SĂŁo pedaços de prata p’las estradas…

Os meus lábios sĂŁo brancos como lagos…
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras…

Sou chama e neve e branca e mist’riosa…
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ă“ meu Poeta, o beijo que procuras!

A Maior Tortura

A um grande poeta de Portugal

Na vida, para mim, não há deleite.
Ando a chorar convulsa noite e dia…
E nĂŁo tenho uma sombra fugidia
Onde poise a cabeça, onde me deite!

E nem flor de lilás tenho que enfeite
A minha atroz, imensa nostalgia! …
A minha pobre MĂŁe tĂŁo branca e fria
Deu-me a beber a Mágoa no seu leite!

Poeta, eu sou um cardo desprezado,
A urze que se pisa sob os pés.
Sou, como tu, um riso desgraçado!

Mas a minha tortura inda Ă© maior:
Não ser poeta assim como tu és
Para gritar num verso a minha Dor!…