Sonetos sobre Sombra de Florbela Espanca

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Sonetos de sombra de Florbela Espanca. Leia este e outros sonetos de Florbela Espanca em Poetris.

Chopin

Não se acende hoje a luz…Todo o luar
Fique lá fora.Bem Aparecidas
As estrelas miudinhas, dando no ar
As voltas dum cordão de margaridas!

Entram falenas meio entontecidas…
Lusco-fusco…um morcego a palpitar
Passa…torna a passar…torna a passar…
As coisas têm o ar de adormecidas…

Mansinho…Roça os dedos plo teclado,
No vago arfar que tudo alteia e doira,
Alma, Sacrário de Almas, meu Amado!

E, enquanto o piano a doce queixa exala,
Divina e triste, a grande sombra loira
Vem para mim da escuridão da sala…

Alma a Sangrar

Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?

Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?

Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
– Sem nos dar braços para os alcançar?!…

Nostalgia

Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que p’las aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!

Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi…
Mostrem-me esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o Reino de que eu sou Infanta!

O meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!

Quero voltar! Não sei por onde vim…
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!

A Minha Dor

A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal…
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias…

A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve… ninguém vê… ninguém…

Espera…

Não me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!

Sou a dona dos místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços…
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!

Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!

Espera… espera… ó minha sombra amada…
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo!…

A Noite Desce

Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos cansados, carinhosas,
A noite desce… Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me beijassem!
Assim me adormecessem! Caridosas
Em braçados de lírios, de mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz…
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe embriagada, louca!

E a noite vai descendo, sempre calma…
Meu doce Amor tu beijas a minh’alma
Beijando nesta hora a minha boca!

O Meu Desejo

Vejo-te só a ti no azul dos céus,
Olhando a nuvem de oiro que flutua…
Ó minha perfeição que criou Deus
E que num dia lindo me fez sua!

Nos vultos que diviso pela rua,
Que cruzam os seus passos com os meus…
Minha boca tem fome só da tua!
Meus olhos têm sede só dos teus!

Sombra da tua sombra, doce e calma,
Sou a grande quimera da tua alma
E, sem viver, ando a viver contigo…

Deixa-me andar assim no teu caminho
Por toda a vida, amor, devagarinho,
Até a Morte me levar consigo…

Alvorecer

A noite empalidece. Alvorecer…
Ouve-se mais o gargalhar da fonte…
Sobre a cidade muda, o horizonte
É uma orquídea estranha a florescer.

Há andorinhas prontas a dizer
A missa d’alva, mal o sol desponte.
Gritos de galos soam monte em monte
Numa intensa alegria de viver.

Passos ao longe… um vulto que se esvai…
Em cada sombra Colombina trai…
Anda o silêncio em volta a q’rer falar…

E o luar que desmaia, macerado,
Lembra, pálido, tonto, esfarrapado,
Um Pierrot, todo branco, a soluçar…

Blasfémia

Silêncio, meu Amor, não digas nada!
Cai a noite nos longes donde vim…
Toda eu sou alma e amor, sou um jardim,
Um pátio alucinante de Granada!

Dos meus cílios a sombra enluarada,
Quando os teus olhos descem sobre mim,
Traça trémulas hastes de jasmim
Na palidez da face extasiada!

Sou no teu rosto a luz que o alumia,
Sou a expressão das tuas mãos de raça,
E os beijos que me dás já foram meus!

Em ti sou Glória, Altura e Poesia!
E vejo-me — milagre cheio de graça! —
Dentro de ti, em ti igual a Deus!…

Quem?

Não sei quem és. Já não te vejo bem…
E ouço-me dizer (ai, tanta vez!…)
Sonho que um outro sonho me desfez?
Fantasma de que amor? Sombra de quem?

Névoa? Quimera? Fumo? Donde vem?…
– Não sei se tu, amor, assim me vês!…
Nossos olhos não são nossos, talvez…
Assim, tu não és tu! Não és ninguém!…

És tudo e não és nada… És a desgraça…
És quem nem sequer vejo; és um que passa…
És sorriso de Deus que não mereço…

És aquele que vive e que morreu…
És aquele que é quase um outro eu…
És aquele que nem sequer conheço…

Realidade

Em ti o meu olhar fez-se alvorada,
E a minha voz fez-se gorjeio de ninho,
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho.

Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada,
E a minha cabeleira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho.

Minhas pálpebras são cor de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci…

Tens sido vida fora o meu desejo,
E agora, que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei, se te perdi…

Quem Sabe?…

Ao Ângelo

Queria tanto saber por que sou Eu!
Quem me enjeitou neste caminho escuro?
Queria tanto saber por que seguro
Nas minhas mãos o bem que não é meu!

Quem me dirá se, lá no alto, o céu
Também é para o mau, para o perjuro?
Para onde vai a alma que morreu?
Queria encontrar Deus! Tanto o procuro!

A estrada de Damasco, o meu caminho,
O meu bordão de estrelas de ceguinho,
Água da fonte de que estou sedenta!

Quem sabe se este anseio de Eternidade,
A tropeçar na sombra, é a Verdade,
É já a mão de Deus que me acalenta?

Que Importa?…

Eu era a desdenhosa, a indif’rente.
Nunca sentira em mim o coração
Bater em violências de paixão
Como bate no peito à outra gente.

Agora, olhas-me tu altivamente,
Sem sombra de Desejo ou de emoção,
Enquanto a asa loira da ilusão
Dentro em mim se desdobra a um sol nascente.

Minh’alma, a pedra, transformou-se em fonte;
Como nascida em carinhoso monte
Toda ela é riso, e é frescura, e graça!

Nela refresca a boca um só instante…
Que importa?… Se o cansado viandante
Bebe em todas as fontes… quando passa?…

Supremo Enleio

Quanta mulher no teu passado, quanta!
Tanta sombra em redor! Mas que me importa?
Se delas veio o sonho que conforta,
A sua vinda foi três vezes santa!

Erva do chão que a mão de Deus levanta,
Folhas murchas de rojo à tua porta…
Quando eu for uma pobre coisa morta,
Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!

Mas eu sou a manhã: apago estrelas!
Hás de ver-me, beijar-me em todas elas,
Mesmo na boca da que for mais linda!

E quando a derradeira, enfim, vier,
Nesse corpo vibrante de mulher
Será o meu que hás de encontrar ainda…

Volúpia

No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade…
A nuvem que arrastou o vento norte…
– Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço…
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças…

Este Livro

Este livro é de mágoas.Desgraçados os
Que no mundo passais, chorai ao lê-lo!
Somente a vossa dor de Torturados
Pode, talvez, senti-lo…e compreendê-lo.

Este livro é para vós. Abençoados
Os que o sentirem, sem ser bom nem belo!
Bíblia de tristes…Ó Desventurados,
Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!

Livro de Mágoas…Dores…Ansiedades!
Livro de Sombras…Névoas e Saudades!
Vai pelo mundo…(Trouxe-o no meu seio…)

Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,
Chorai comigo a minha imensa mágoa,
Lendo o meu livro só de mágoas cheio!…

Castelã da Tristeza

Altiva e couraçada de desdém,
Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo o amor …
E nunca em meu castelo entrou alguém!

Castelã da Tristeza, vês? … A quem? …
– E o meu olhar é interrogador –
Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr …
Chora o silêncio … nada … ninguém vem …

Castelã da Tristeza, porque choras
Lendo, toda de branco, um livro de horas,
À sombra rendilhada dos vitrais? …

À noite, debruçada, plas ameias,
Porque rezas baixinho? … Porque anseias? …
Que sonho afagam tuas mãos reais? …

Princesa Desalento

Minh’alma é a Princesa Desalento,
Como um Poeta lhe chamou, um dia.
É revoltada, trágica, sombria,
Como galopes infernais de vento!

É frágil como o sonho dum momento,
Soturna como preces de agonia,
Vive do riso duma boca fria!
Minh’alma é a Princesa Desalento…

Altas horas da noite ela vagueia…
E ao luar suavíssimo, que anseia,
Põe-se a falar de tanta coisa morta!

O luar ouve a minh’alma, ajoelhado,
E vai traçar, fantástico e gelado,
A sombra duma cruz à tua porta…

Passeio ao Campo

Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!

Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina…
Pele doirada de alabastro antigo…
Frágeis mãos de madona florentina…
– Vamos correr e rir por entre o trigo! –

Há rendas de gramíneas pelos montes…
Papoilas rubras nos trigais maduros…
Água azulada a cintilar nas fontes…

E à volta, Amor… tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras!…

Em Vão

Passo triste na vida e triste sou,
Um pobre a quem jamais quiseram bem!
Um caminhante exausto que passou,
Que não diz onde vai nem donde vem.

Ah! Sem piedade, a rir, tanto desdém
a flor da minha boca desdenhou!
Solitário convento onde ninguém
A silenciosa cela procurou!

E eu quero bem a tudo, a toda gente…
Ando a amar assim, perdidamente,
A acalentar o mundo nos meus braços!

E tem passado, em vão, a mocidade
Sem que no meu caminho uma saudade
Abra em flores a sombra dos meus passos!