Textos sobre Horas de Joel Neto

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Textos de horas de Joel Neto. Leia este e outros textos de Joel Neto em Poetris.

Ser Escritor

E, então, porque não podemos viver de outra maneira, escrevemos. E cai-nos o cabelo e apodrecem-nos os dentes, como dizia Flannery O’Connor.

E somos uns chatos. E somos maus maridos e maus filhos e maus amigos. E sentimos culpa, e sentimo-nos indignos de estima, e continuamos, mesmo assim, a não responder quando falam connosco.

E não telefonamos nos anos, nem aparecemos nos churrascos, nem vamos ao café. E, se vamos, a única coisa de que falamos é disso: do livro. E tudo aquilo sobre que se conversa pode servir ao livro, caso contrário não nos importa.

E somos os maiores quando um parágrafo nos sai bem, e ficamos de rastos quando não encontramos um verbo. E sabemos que tem de ser mesmo assim, porque se não for o romance fica uma merda. Mas sentimos culpa na mesma.

E não pagamos as contas, e esquecemo-nos de pedir a garrafa do gás, e calçamos meias de pares diferentes. E de repente queremos fumar dois maços de cigarros e beber meia garrafa de uísque, sozinhos no jardim, a olhar para a noite e a chorar.

E temos de fazer um esforço para mudar de roupa,

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O Lugar Certo

O tempo mudava de um momento para o outro, juntando, no curto espaço de vinte e quatro horas, a Primavera e o Outono, o Verão e até Inverno. Mas José Artur sentia-se vivo como um lobo das estepes libertado. Tinha a tensão alta dos heróis românticos e, em muitas circunstâncias, dava por si a citar Thoreau:

“Fui para os bosques viver de livre vontade. Vara sugar todo o tutano da vida, para aniquilar tudo o que não era vida e para, quando morrer, não descobrir que não vivi.”

Lamentava que Darwin ou Twain não tivessem encontrado naquelas ilhas o mesmo que ele encontrava agora, mas percebeu que, no século dezanove, ainda restavam outros paraísos no planeta. E, de qualquer modo, havia Chateaubriand, Raul Brandão, até Melville, impressionado com a valentia dos marinheiros das ilhas a leste de Nantucket. Não, ele não estava louco. Havia uma sabedoria naquilo — havia ecos e refracções, como se algo de mais profundo se insinuasse. Tinha a certeza de que, se a terra tremesse agora, conseguiria senti-la.

Aquele era o seu lugar. Não havia por que sentir falta dos privilégios da cidade. Um homem que soubesse povoar-se tinha alimento para uma vida na fotografia de um labandeira,

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Os Distraídos e os Organizados

O «distraído» é a figura mais privilegiada de uma família, de um grupo de amigos, de uma empresa. O «distraído» chega sempre atrasado – paciência, é distraído. O «distraído» chumba na escola primária – coitado, é distraído. O «distraído» não dá presentes no Natal – deixa lá, é distraído. O «distraído» não pergunta pelas análises com que nos andávamos a consumir – não foi por mal, já sabes que é distraído. O «distraído» é engraçado e é fofinho. O seu defeito, na verdade, é uma virtude. O «distraído» mete nojo e faz inveja – e, se há uma presença de que não gostamos nunca de dispensar-nos, é a do «distraído». Dá patine, andar com o «distraído». O «distraído» é um charme. O «distraído» é aquilo que nós seríamos se não fôssemos esta desgraça que somos.

Porque depois, ao longo da vida, o «distraído» fica com os melhores empregos. O «distraído», bem vistas as coisas, não é aluado: é criativo – é um artista. E o «distraído» fica sempre com as raparigas mais giras também. Naturalmente: só é distraído quem pode – e o «distraído» é o mais bonito de nós todos. Também por isso, aliás, nos dá jeito emparceirar com o «distraído»: sempre pode ser que a gorda sobre para nós.

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Jogar à Bola na Rua

– É triste, sabes? As crianças, hoje em dia, mesmo as mais dadas a jogos de computador e sei lá mais o quê, alimentam-se melhor, fazem mais exercício, têm físicos mais equilibrados. Para além de tudo, sabem fazer uma triangulação, percebem com toda a facilidade como se joga em quatro-quatro-dois e em quatro-três-três, acorrem a um pontapé de canto e cumprem a coreografia toda, dançando na grande área como os profissionais. Só que, depois, não têm intimidade com a bola. Não conhecem as suas manias, os movimentos mais imprevistos do seu comportamento, os seus amuos. E só os conheceriam se jogassem à bola na rua. Se jogassem à bola seis ou sete ou oito horas por dia, como nós chegávamos a jogar. Se fossem ao dentista arrancar um dente e, mesmo assim, precisassem de levar uma bola debaixo do braço, para ocupar os tempos mortos.