Citação de

Os Distraídos e os Organizados

O «distraído» é a figura mais privilegiada de uma família, de um grupo de amigos, de uma empresa. O «distraído» chega sempre atrasado – paciência, é distraído. O «distraído» chumba na escola primária – coitado, é distraído. O «distraído» não dá presentes no Natal – deixa lá, é distraído. O «distraído» não pergunta pelas análises com que nos andávamos a consumir – não foi por mal, já sabes que é distraído. O «distraído» é engraçado e é fofinho. O seu defeito, na verdade, é uma virtude. O «distraído» mete nojo e faz inveja – e, se há uma presença de que não gostamos nunca de dispensar-nos, é a do «distraído». Dá patine, andar com o «distraído». O «distraído» é um charme. O «distraído» é aquilo que nós seríamos se não fôssemos esta desgraça que somos.

Porque depois, ao longo da vida, o «distraído» fica com os melhores empregos. O «distraído», bem vistas as coisas, não é aluado: é criativo – é um artista. E o «distraído» fica sempre com as raparigas mais giras também. Naturalmente: só é distraído quem pode – e o «distraído» é o mais bonito de nós todos. Também por isso, aliás, nos dá jeito emparceirar com o «distraído»: sempre pode ser que a gorda sobre para nós. A não ser que, sendo apenas mais entroncadinha do que as outras, a gorda seja também a melhor rapariga de todas, a mais doce, a mais generosa. Nesse caso, é certo que se vai casar com o «distraído» – e, ainda por cima, não tarda já fez uma dieta, já aprendeu a cozinhar, já leu o Proust e já é, contas feitas, a mais interessante de todas, a ver se consegue conservar o «distraído».

Do outro lado, estamos nós: os «organizadinhos». A vida do «organizadinho» é, claro, um pequeno inferno. O «organizadinho» acorda de manhã e vai logo responder aos e-mails. O «organizadinho» recebe dois mil telefonemas por dia e liga de novo após cada um dos mil e oitocentos que não se concluíram, por falta de rede. O «organizadinho» tem memorandos para redigir, reuniões para preparar, apresentações para escrever. O «organizadinho» passa na Segurança Social, reúne os papéis para o IRS e dá um salto ao dentista para marcar uma consulta porque, entretanto, não atende de lá ninguém. O «organizadinho» planeia as férias que vai fazer com o «distraído», marca as aulas de surf a que vai assistir com o «distraído», faz um desvio à Worten para ver os preços dos LCD em que planeia ver o Mundial com o «distraído» e a mulher do «distraído» e os miúdos do «distraído». O «distraído» fica às vezes com a marcação do restaurante, mas distrai-se – e depois o «organizadinho» ainda vai jantar com ele à tasca rafeira duas portas abaixo.

O «organizadinho» morde-se nas bochechas porque come a correr e fere as mãos na porta do armário porque se veste a correr também. Entretanto, o «distraído» não atendeu uma chamada, não respondeu a um SMS, não devolveu um e-mail. O «distraído» deixou o telemóvel no silêncio, esqueceu-se de carregar o cartão, nem ligou o computador. O «distraído» parte do princípio de que todos os telefonemas do «organizadinho», parecendo diligentes, são no fundo supérfluos. O «organizadinho», se vê que vai atrasar-se com um trabalho, manda um e-mail a pedir mil desculpas porque é capaz de atrasar-se, faz seis telefonemas a confirmar se o cliente recebeu o e-mail, entrega afinal o trabalho a horas – e, depois, ainda fica com o ónus de se ter atrasado. O «distraído» atrasa-se todos os dias e depois espera que o cliente lhe telefone. O «distraído» é mais feliz do que o «organizadinho». O «distraído» vive, em média, mais vinte anos do que ele.

Houve fases na minha vida (por exemplo: no liceu) em que tentei ser o «distraído». O máximo que consegui foram algumas fotocópias e uma pilha de nervos. Hoje, contento-me em estar com o «distraído». Somos ambos casados e já não é a gorda sobrante o que eu espero dele. Sei que ele vai chegar atrasado, aliás. Mas, entretanto, terá valido a pena esperar. O «distraído» é engraçado.