Textos Interrogativos de Mia Couto

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Carta

(digo dos que se ditam:
a minha defesa
são os vossos punhais)

Quando me disseram «não se vem à vida para sonhar» passei a odiar-vos. Para vos matar escolhi materiais inacessíveis ao meu ódio. Em mim fizestes despertar a irreparável urgência de ferir.

Descobri a vossa intenção: decepar as minhas raízes mais profundas, obrigar-me à cerimónia das palavras mortas. Preferi reiniciar-me: na solidão me apaguei. Estava só para me encher de gente, para me povoar de ternura. Eu queria simplesmente olhar de frente a verdade das pequenas coisas: esta água vem de onde, quem teceu este linho, que mãos fizeram este pão?

Desloquei-me para tudo ver de um outro lado: levei o meu olhar, o desejo de um princípio infinitamente retomado. Ganhei sonoridade nas vozes que me habitavam silenciosamente. Entre mar e terra eu preferia ser espuma, ter raiz e poente entre oceano e continente.

O tempo, por vezes, morria de o não semear. Terras que golpeava com ternura eram feridas que em mim se abriam para me curar. Eram terras suspeitas, acusadas de futuro. Outras vezes eram mãos de um corpo que ainda me não nascera. Surgiam da obscuridade para afastar a água e nela me deixar tombar.

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A Escrita Exige Sempre a Poesia

Sou escritor e cientista. Vejo as duas actividades, a escrita e a ciência, como sendo vizinhas e complementares. A ciência vive da inquietação, do desejo de conhecer para além dos limites. A escrita é uma falsa quietude, a capacidade de sentir sem limites. Ambas resultam da recusa das fronteiras, ambas são um passo sonhado para lá do horizonte. A Biologia para mim não é apenas uma disciplina científica mas uma história de encantar, a história da mais antiga epopeia que é a Vida. É isso que eu peço à ciência: que me faça apaixonar. É o mesmo que eu peço à literatura.

Muitas vezes jovens me perguntam como se redige uma peça literária. A pergunta não deixa de ter sentido. Mas o que deveria ser questionado era como se mantém uma relação com o mundo que passe pela escrita literária. Como se sente para que os outros se representem em nós por via de uma história? Na verdade, a escrita não é uma técnica e não se constrói um poema ou um conto como se faz uma operação aritmética. A escrita exige sempre a poesia. E a poesia é um outro modo de pensar que está para além da lógica que a escola e o mundo moderno nos ensinam.

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Presos ao Passado

Num romance que estou escrevendo há uma personagem a quem perguntam: «E onde irás ser sepultado?» E ela responde: «A minha sepultura maior não mora no futuro. A minha cova é o meu passado.»
De facto, cada um de nós corre o risco de ficar sepultado no seu próprio passado. Todos temos de resistir para não ficarmos aprisionados numa memória simplificada que é o retrato que outros fizeram de nós. Todos trazemos escrito um livro e esse texto quer-se impor como nossa nascente e como nosso destino. Se existe uma guerra em cada um de nós é a de nos opormos a esse fado de estarmos condenados a uma única e previsível narrativa.

Estamos Nós Realmente Salvando o Mundo?

Hoje a pergunta com que nos confrontamos é simples: estamos nós realmente salvando o mundo? Não me parece que a resposta possa ser aquela que gostaríamos. O mundo só pode ser salvo se for outro, se esse outro mundo nascer em nós e nos fizer nascer nele.
Mas nem o mundo está sendo salvo nem ele nos salva enquanto seres de existência única e irrepetível. Alguns de nós estarão fazendo coisas que acreditam ser importantíssimas. Mas poucos terão a crença que estão mudando o nosso futuro. A maior parte de nós está apenas gerindo uma condição que sabemos torta, geneticamente modificada ao sabor de um enorme laboratório para o qual todos trabalhamos mesmo sem vencimento.

Se alguma coisa queremos mudar e parece que mudar é preciso, temos que enfrentar algumas perguntas. A primeira das quais é como estamos nós, biólogos, pensando a ciência biológica? Antes de sermos cientistas somos cidadãos críticos, capazes de questionar os pressupostos que nos são entregues como sendo «naturais». A verdade, colegas, é que estamos hoje perante uma natureza muito pouco natural.

E é aqui que o pecado da preguiça pode estar ganhando corpo. Uma subtil e silenciosa preguiça pode levar a abandonar a reflexão sobre o nosso próprio objecto de trabalho.

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