A Vida OblĂqua
SĂł agora pressenti o oblĂquo da vida. Antes sĂł via atravĂ©s de cortes retos e paralelos. NĂŁo percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida Ă© outra. Que viver nĂŁo Ă© sĂł desenrolar sentimentos grossos â Ă© algo mais sortilĂ©gico e mais grĂĄcil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existĂȘncia feneça no que tem de oblĂquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e nĂŁo existe nisso contradição.
A vida oblĂqua Ă© muito Ăntima. NĂŁo digo mais sobre essa intimidade para nĂŁo ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblĂquo na sua independĂȘncia desenvolta.
E conheço tambĂ©m um modo de vida que Ă© suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contĂnua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excĂȘntrica. Tem um lado da vida que Ă© como no inverno tomar cafĂ© num terraço dentro da friagem e aconchegada na lĂŁ.
Conheço um modo de vida que é sombra leve desfraldada ao vento e balançando leve no chão: vida que é sombra flutuante,
Textos sobre InĂșteis de Clarice Lispector
4 resultadosAmor nĂŁo Tem NĂșmero
Se vocĂȘ nĂŁo tomar cuidado vira nĂșmero atĂ© para si mesmo. Porque a partir do instante em que vocĂȘ nasce classificam-no com um nĂșmero. Sua identidade no FĂ©lix Pacheco Ă© um nĂșmero. O registro civil Ă© um nĂșmero. Seu tĂtulo de eleitor Ă© um nĂșmero. Profissionalmente falando vocĂȘ tambĂ©m Ă©. Para ser motorista, tem carteira com nĂșmero, e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte Ă© identificado com um nĂșmero. Seu prĂ©dio, seu telefone, seu nĂșmero de apartamento â tudo Ă© nĂșmero.
Se Ă© dos que abrem crediĂĄrio, para eles vocĂȘ Ă© um nĂșmero. Se tem propriedade, tambĂ©m. Se Ă© sĂłcio de um clube tem um nĂșmero. Se Ă© imortal da Academia Brasileira de Letras tem o nĂșmero da cadeira.
Ă por isso que vou tomar aulas particulares de MatemĂĄtica. Preciso saber das coisas. Ou aulas de FĂsica. NĂŁo estou brincando: vou mesmo tomar aulas de MatemĂĄtica, preciso saber alguma coisa sobre cĂĄlculo integral.
Se vocĂȘ Ă© comerciante, seu alvarĂĄ de localização o classifica tambĂ©m.
Se Ă© contribuinte de qualquer obra de beneficĂȘncia tambĂ©m Ă© solicitado por um nĂșmero. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de negĂłcio recebe um nĂșmero. Para tomar um aviĂŁo,
Vou Voltar para Mim Mesma
Minha vida Ă© um grande desastre. Ă um desencontro cruel, Ă© uma casa vazia. Mas tem um cachorro dentro latindo. E eu â sĂł me resta latir para Deus. Vou voltar para mim mesma. Ă lĂĄ que eu encontro uma menina morta sem pecĂșlio. Mas uma noite vou Ă Secção de Cadastro e ponho fogo em tudo e nas identidades das pessoas sem pecĂșlio. E sĂł entĂŁo fico tĂŁo autĂłnoma que sĂł pararei de escrever depois de morrer. Mas Ă© inĂștil, o lago azul da eternidade nĂŁo pega fogo. Eu Ă© que me incineraria atĂ© meus ossos. Virarei nĂșmero e pĂł. Que assim seja. AmĂ©n. Mas protesto. Protesto Ă toa como um cĂŁo na eternidade da Seção de Cadastro.
Respeito Muito o Homem que Chora
HĂĄ um tipo de choro bom e hĂĄ outro ruim. O ruim Ă© aquele em que as lĂĄgrimas correm sem parar e, no entanto, nĂŁo dĂŁo alĂvio. SĂł esgotam e exaurem. Uma amiga perguntou-me, entĂŁo, se nĂŁo seria esse choro como o de uma criança com a angĂșstia da fome. Era. Quando se estĂĄ perto desse tipo de choro, Ă© melhor procurar conter–se: nĂŁo vai adiantar. Ă melhor tentar fazer-se de forte, e enfrentar. Ă difĂcil, mas ainda menos do que ir-se tornando exangue a ponto de empalidecer.
Mas nem sempre Ă© necessĂĄrio tornar-se forte. Temos que respeitar a nossa fraqueza. EntĂŁo, sĂŁo lĂĄgrimas suaves, de uma tristeza legĂtima Ă qual temos direito. Elas correm devagar e quando passam pelos lĂĄbios sente-se aquele gosto salgado, lĂmpido, produto de nossa dor mais profunda.
Homem chorar comove. Ele, o lutador, reconheceu sua luta Ă s vezes inĂștil. Respeito muito o homem que chora. Eu jĂĄ vi homem chorar.